terça-feira, 29 de junho de 2010

Asas do Tempo

            Quando ele abriu os olhos pela primeira vez, aquela foi a primeira imagem que viu. Um rosto delicado, de pele pálida, com seus cabelos dourados e longos, e seus olhos azuis, escurecidos pelas sombras das asas que se abriam em suas costas, trazendo nas mãos uma ampulheta, que deixava cair o seu primeiro grão de areia.
            Tinha acabado de ser concebido. Sentia o mundo pela primeira vez. Mas, antes mesmo de sua mãe tomá-lo em seus braços, ele o viu. Aquele ser angelical que o acompanharia durante toda sua vida.
            A primeira vem em que conseguiu desofuscar a imagem do mundo ao seu redor, foi o anjo quem tirou a venda de seus olhos. Quando deu seu primeiro passo – com suas próprias pernas – foi o anjo quem segurou suas mãos e deu forças para que ele fosse capaz de fazê-lo. Ao dizer sua primeira palavra, foi o anjo quem lhe proporcionou a linguagem. Foi o anjo quem ousou secar suas primeiras lágrimas de tristeza. E, na primeira vez em que se feriu, foi o anjo quem fechou aquela ferida – que parecia nunca mais cicatrizar.
            Em cada momento, em cada passo, em cada escolha, aquele anjo sempre o acompanhara. Ensinara-lhe tudo o que ele sabia. Contudo, em troca de tudo que lhe proporcionava ele haveria de lhe cobrar um preço. Por cada dádiva, por cada oportunidade, por cada conhecimento ele lhe tomava algo.
            Primeiro ele tomou-lhe a inocência. Ele vivia agora pelo certo e o errado. Era obrigado a assistir às atrocidades do mundo.
            Roubou-lhe depois as fantasias. Não era mais permitido sonhar. Era obrigado a viver aquela dura realidade, com preocupações e sentimentos que jamais tivera outrora.
            Aos poucos usurpou-lhe o vigor. Ele já não se sentia como antes. Seu próprio corpo parecia um fardo.
            Começou por fim a tirar aqueles que ele amava. Levando-os, friamente, um a um, embora de sua vida.
            Por mais que ele tentasse, nunca conseguiria alcançar o anjo que parecia sempre saber o que estava por vir. A criatura celestial voava sempre à sua frente, sem jamais lhe permitir ver o futuro. Então ele ajoelhou-se diante dele, derramando lágrimas de desespero e dor – que carregavam todos os sentimentos de seu coração dilacerado – e implorou que o deixasse voltar atrás, que começasse tudo de novo. Mas, na sua frieza divina, o anjo lhe disse “Não”. E, ele ficou lá, solitário, de mãos atadas diante de seu passado, apenas revivendo suas lamentações e melancolias.
            O anjo então tomou-lhe as batidas do coração. Como da primeira vez, a única imagem diante de seus olhos era daquele rosto andrógeno e suas asas abertas. Que, fitando-o com uma serenidade profunda, trazia nas mãos a ampulheta, da qual caía o último grão de areia.

Fim

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