A Menina Que Não Tinha Nome

CAPÍTULO 1

O Despertar


            Seus olhos se abriam pela primeira vez. Ao menos foi o que ela pensou quando teve a sensação de ter a luz tocando-os e trazendo com ela aquela incrível paisagem.
            Sentira-se completamente entusiasmada ao olhar o mundo ao seu redor. Nunca havia se deparado com algo tão maravilhoso. Aliás, não se lembrava de ter visto coisa alguma. Para ela, tudo era inédito.
            Olhou para cima e viu aquilo que – ela viria descobrir mais tarde – se chamava árvore. Ela era imensa. Seriam necessários muitos homens para medi-la, e tantos quantos para abraçá-la. Seu tronco era forte. Subia imponente aos céus com seu marrom escuro de casca destacando ainda mais o musgo que o cobria. Por entre seus altos galhos e folhas passavam os raios de sol que iluminavam o lugar.
            - Foi dali que eu vim? – pensou a menina ao ver os enormes frutos de árvore que, acreditou, seriam suficientes para gerar alguém como ela .
            Neste momento voltou seu pensamento para si. Pela primeira vez sentiu seu próprio corpo. Fechou as mãos e sentiu a grama e a terra passarem por entre seus dedos, descobrindo assim o tato.
            Ela estava deitada ao pé da árvore, com sua cabeça recostada em uma de suas raízes. Mas, não fazia ideia de como chegara ali. Na realidade, ela não fazia a menor ideia de nada. Nem de como chegara, nem de como viera, ou muito menos, para onde deveria ir ou o que deveria fazer. Esforçou-se ao máximo para lembrar ao menos de quem era. Todavia, nada lhe vinha a cabeça. A sua memória estava completamente vazia. Nem mesmo um nome ela tinha.
               Ao se dar conta disso, assustada, prontamente levou a mão ao rosto na esperança de saber se ela mesma existia. Ao erguer a mão direita, a viu pela primeira vez. Olhou bem para ela e mexeu os dedos, como se quisesse agarrar o ar. Era uma sensação engraçada. Sentia o ar lhe fazer cócegas. Mas era bom. Algo que ela jamais havia experimentado. 
            Viu suas mão sujas de terra. Sacudiu-a para limpá-la e, finalmente, tocou seu próprio rosto. Pela primeira vez experimentou o que era seu delicado toque. Tudo era novo. Tudo parecia deixá-la extasiada. Mesmo as coisas mais comuns. Tudo aquilo que, aos olhos de quaisquer outras pessoas, passariam despercebidos. Para ela, cada sentimento, cada momento, tudo era uma maneira de descobrir o mundo à sua volta; de descobri a si mesma.
           Maravilhava-se com os sons ao seu redor: o farfalhar das folhas das árvores, o vento assobiando no horizonte, o barulho das águas o canto dos pássaros eram para ela a mais perfeita das sinfonias. Eram a harmoniosa melodia que sustentara seu sono por tanto tempo quanto ela seria incapaz de contar. Maravilhava-se com cada vislumbre, com cada toque. Cada imagem que passava diante de seus olhos, lhe parecia a mais bela obra de arte. Cada toque lhe fazia sentir a vida fluir dentro de si. Fazia-lhe sentir tão intensamente, como se jamais houvesse sentido.
        Entretanto, aos poucos isso começou a lhe parecer pouco. Despertava naquela garotinha,  que até aquele momento contentara-se apenas com os primeiros instantes de suas sensações e percepções, um ímpeto de conhecer tudo o que houvesse ao seu redor. Gostaria de experienciar tudo aquilo que aquele lugar -  e todos quantos ela pudesse visitar - tinham a lhe oferecer.
               Esfregou os olhos e levantou a cabeça. Fitou a paisagem tão longe quanto sua vista podia alcançar. deparando-se assim com Sol. Fixou, por alguns instantes, os olhos naquele céu límpido e iluminado; colorido de azul.


            De uma folha no alto da árvore cai uma pequena gota de orvalho. Que se desfaz ao entrar em contato com o rosto da menina, batendo na sua testa.
            - Ouch!- diz ela despertando-se de seu transe.
            Limpa delicadamente o rosto, passando a mão onde havia se molhado. Depois passa a mão por  todo o rosto, como para acordar-se. Lentamente se levanta.
            Abre os braços para sentir a brisa passando por todo seu corpo e gira, observando tudo ao seu redor. Os pássaros voando sincronizados, cortando os céus em sua formação em vê, as montanhas que se desdobram ao longe, as flores balançando ao menor movimento do vento, os rios contornando seus cursos, a borboleta que sai do casulo, os botões que desabrocham, colorindo os campos, os animais que correm ao horizonte. Havia sempre algo acontecendo, chamando sua atenção.
            O sol refletido nas águas do rio a fez correr até lá. Viu as águas correndo em seu leito cristalino e puro, mais parecia um espelho.
            Ela se aproximou mais e viu seu reflexo na água. Assustou-se. Afastou-se do rio. Mas, depois de hesitar um pouco, voltou até a margem e contemplou sua imagem naquele espelho natural.
            Percorreu as mãos em torno de sua face para ter certeza de que o rosto que via era de fato o dela. Com seus cabelos e olhos escuros – estando os últimos reluzindo um incrível brilho diante daquela estranha experiência- sua boca delicada, e as bochechas arredondadas e rosadas, devido a timidez de se ver pela primeira vez.
            Estendeu os braços até que suas mãos pudessem tocar a água, mergulhando-as no rio. Sentiu pois a água escorrer por entre seus dedos e contornar suas mãos. Então as fechou em forma de concha e banhou seu rosto, experimentando um frescor sem igual.
            Olhou para os lados e viu ao longe, à sua direita, uma cachoeira, que alimentava o rio. As margens deste eram contornadas com pedras, como se tivesse sido desenhado por alguém. Ao longo de todo o curso contemplado pelas árvores e flores que serviam de abrigo e alimento aos animais que ali habitavam.
            Notou que próximo dela havia uma poça – que teria se formado, possivelmente, numa recente cheia das águas que ali corriam. Dentro dela havia um peixe, que confuso e solitário, nadava de um lado ao outro procurando uma maneira de voltar ao rio em que outrora estivera.
            A garota, ao ver a cena, juntou as mãos da mesma maneira que fizera ao banhar-se e apanhou o aflito animal. Conduziu-o ao leito normal, mergulhou as mãos, devolvendo a ele sua liberdade.
            Entretanto, ao ser colocado de volta, antes de começar a desfrutar novamente de seu habitat natural, ele fitou-a nos olhos e disse:
            - Obrigado, garota!
            Para qualquer outra pessoa aquilo pareceria absurdo. Mas, para ela, que estava conhecendo o mundo agora, era completamente normal.
            - Nem todos são tão amáveis como você. – continuou ele – Muitos teriam ignorado meu sofrimento e me deixado a mercê do tempo. Em troca disso eu lhe darei uma recompensa.
            O peixe era na realidade um espírito de sabedoria. A cada dia assumia uma forma. Naquele dia havia escolhido se transformar num peixe para poder conhecer melhor o fundo dos rios.
            - Beba da água daquela poça da qual me tiraste e ganhará um presente sem igual.
            Prontamente a menina o obedeceu e assim o fez. Encheu as mãos com a água e levou-a à boca. Enquanto a mesma tocava seus lábios o conhecimento fluía por todo seu corpo. Foi assim que ela descobriu que a terra se chamava terra, que a água se chamava água, e o nome de todas as coisas e animais.
            Aquela era uma fonte do conhecimento deixada pelo espírito. Ela não aprendeu apenas os nomes e palavras, mas também a falar, e a pensar o mundo de uma maneira completamente diferente. Perguntas como: “De onde eu vim?”, “Como surgiu o mundo?”, “Para onde vou?”, “Quem sou eu?”, começaram a ecoar em sua mente, fazendo com que ela ficasse inquieta, com uma vontade incomparável de conhecer aquele mundo que, com o saber, parecia infinito.
            - Obrigado! – disse a menina. Ouvindo pela primeira vez o som de sua própria voz – Mas, qual o seu nome?
            - Meu nome é Babéru. – respondeu ele – Sou um espírito do conhecimento.
            - Se o senhor é um espírito do conhecimento pode, com toda certeza, responder a uma pergunta minha, não? – replicou a garotinha.
            - Algumas perguntas ainda não têm respostas. Outras nem mesmo eu saberia responder. -  respondeu ele – Mas, faça-a a mim que talvez eu possa saciar sua dúvida.
            - Qual é o meu nome? – perguntou ela toda esperançosa.
            - Essa é uma pergunta que só você poderá responder, minha cara. – respondeu ele, franzindo sua testa de peixe – Contudo, para lhe ajudar na sua busca, lhe darei mais um presente.
            Com um incrível salto ele jogou uma única gota de água que caiu sobre a testa da garota. Com isso ela descobriu que poderia falar a língua de todos os animais.
            Ela tentou agradecer, mas já era tarde. Quando Babéru caiu novamente na água colocou-se a nadar numa velocidade incrível, afastando-se rapidamente dali. Essa foi a última vez que ela viu o espírito que mudaria completamente sua vida.
            E ela ficou lá. Sentada às margens, refletindo sobre tudo o que acabara de aprender e todos os questionamentos que subitamente tomaram conta de sua cabeça.




CAPÍTULO 2

O Gigante


            De uma hora para outra o mundo daquela garota mudara totalmente. Passara de sentimentos de admiração e êxtase com todas aquelas descobertas para algo mundo maior, muito mais complexo. Ainda que não tivesse perdido os encantos com toda aquela simplicidade, ela precisava ir além. Afinal de contas, Babéru havia lhe ensinado uma nova maneira de ver a realidade, diversos modos de questioná-la, mas não lhe deu uma só resposta. Ela havia transformado seu mundo em perguntas e, de alguma forma, sabia que teria que respondê-las por si só.
            Todos os acontecimentos - mesmo os mais simples - que chamavam sua atenção apenas pelo fato de serem novos causavam nela um incômodo. Era como se tudo e todos a  instigassem a buscar respostas, por mais insignificante que pudessem parecer algumas perguntas.
            - Por que os pássaros voam? De onde vêm os rios? Qual a razão das formigas andarem em fila? Por que o sol muda de lugar no horizonte? De onde vieram as pessoas? Para onde elas vão? – ela se perguntava, observando que para qualquer lugar que olhava mais perguntas surgiam e mais difíceis de responder elas se tornavam.
            Parou para refletir. Precisava organizar suas idéias e pensamentos. Não era possível responder a todas aquelas perguntas ao mesmo tempo. Era preciso ter um plano. Ou, pelo menos, estabelecer um ponto de partida.
            - São tantas as perguntas que eu preciso responder... – disse ela esfregando os olhos – e, mal sei quem eu mesma sou.
            -Talvez seja essa a solução. – pensou animada – Se eu começar tentando descobrir quem sou irá facilitar as coisas. Pode ser que nessa busca eu ainda encontre algumas respostas para meus questionamentos sobre o mundo, e também o que estou fazendo nele.
            Era isso. Parecia tão óbvio. Nada mais lógico do que começar a compreender todas as coisas do que começando por si mesma. Todavia, ela mal fazia idéia de quão difícil seria a jornada em busca de uma que resposta - segundo ela – tão simples.
            Seus pensamentos foram distraídos por uma sensação de fome. Só então ela se deu conta de que já haviam passado horas e ela continuava ali, sentada às margens
            Olhou para a árvore colossal sobre a qual estava deitada quando despertara, mas seu tronco era demasiadamente alto para que ela pudesse alcançar seus frutos. Mesmo que o fizesse eles seriam grandes demais para ela. Eram suficientes para que somente um deles pudesse sustentar algumas pessoas por mais de um dia.
            Aquela árvore haveria de ser um grande mistério que lhe acompanharia por toda a sua vida.
            Procurou por outros frutos, mas que estivessem em árvores mais baixas para ela poder alcançá-los. Viu há poucos metros uma pequena macieira. Dela brotavam maçãs maduras que refletiam um vermelho tão intenso que ela julgou não poder encontrar algo mais saboroso naquele lugar.
            Realmente fora o melhor. As frutas estavam doces como o mais puro mel. Lá estava ela, deliciando-se e lambuzando-se com aquele aroma. Mas, ao longe, uma voz forte e retumbante começava a ecoar do horizonte.
            - Onde está você, meu bebê? – chamando num tom alto e grave.
            A menina não se lembrava de já ter ouvido antes aquela voz, mas mesmo assim ela lhe causou calafrios. Ela sentiu-se arrepiada dos pés à cabeça. Tinha vontade de fugir dali. Simplesmente sair correndo sem rumo, com a única intenção de se afastar daquela voz. Contudo, sua curiosidade a manteve firme, apenas esperando para conhecer a criatura dona daquela fala imponente.
            Aos poucos o som foi se aproximando de onde estava a garota. Junto com ele se ouvia um forte bater na terra. A cada batida era possível sentir o chão tremer debaixo de seus pés.
            A criatura revelou-se uma mulher – ou quase, não fosse pelos cinco metros de altura. - Era alta e corpulenta, chegando quase a ser roliça. Por sobre seus ombros escorriam seus cabelos dourados que se ofuscavam ao encontrarem as suas roupas feitas de couro, peles e folhas.
            - Aí está você. – disse a gigante olhando com um misto de sorriso aliviado e um semblante de raiva. – Nunca mais me dê um susto desses.
            A cabeça da menina parecia rodar. Estava completamente confusa. Quem era aquela mulher? Por que ela a chamava de meu bebê? Já teria ela a conhecido antes?
            -Te levarei de volta para casa e lá estará segura. Jamais deixarei que saia de novo. Ficará sempre juntinha de sua mama.
            Ela não tinha a menor idéia de quem era aquela gigante. Ou simplesmente não se lembrava. Mas, de uma coisa ela estava certa, não queria voltar para onde quer que fosse. Se ela tinha fugido uma vez aquilo não era bom sinal. Não queria ficar presa. Havia um mundo todo à espera dela. Ela ansiava por ele. Não podia esperar que quem quer que fosse tomasse isso dela. Mas, já era tarde, a gigante já a estava tomando em seus braços. Ela tentou debater-se, mas foi em vão.
            - Fique quieta – disse a gigante segurando-a mais forte – Já disse que estamos indo a um lugar seguro.
            Vendo que não adiantava o que fizesse seria impossível contê-la, a garota decidiu esperar e ver onde aquilo iria chegar. Submeteu-se às vontades da enorme criatura.
            A caminhada estendeu-se por algumas horas. Com passadas rápidas seguia a imensa mulher carregando-a nos braços como se um recém-nascido.
            Por algum tempo a garotinha observou tudo o que acontecia a sua volta. Os lugares por onde passavam, as mudanças de paisagem e o sol caminhando no céu ao longo do dia. Mas aos poucos foi ficando entediada e cansada. Logo adormeceu.
            Não foi capaz de medir o tempo em que passou adormecida. Lembrou-se apenas de ter sido acordada com um leve balanço em seu corpo e aquela voz grave sussurrando:
            - Acorde. Nós já chegamos.
            A menina despertou de seu sono e ficou surpresa. Apesar de rústica e até um pouco áspera, a gigantesca mulher lhe oferecia carinho com certa delicadeza, tendo para com ela um tratamento - embora de forma estranha – maternal.
            Porém, ainda que lhe oferecesse todos aqueles cuidados, a gigante parecia zangada e preocupada. Seu “bebê” havia fugido dela. Era inconcebível que algo como isso acontecesse. Como ela podia ter feito isso? Ela só a estava mantendo segura dos perigos que havia lá fora. Era tão difícil para aquela criança compreender isso?
            - Vou cuidar para que você esteja sempre em segurança. O mundo é um lugar muito perigoso. – disse a imensa criatura com sua voz grave enquanto procurava por algo dentro de um baú. – Não vou mais me arriscar a perdê-la.
            A menina estava confusa. Estava num quarto imenso, mas as mobílias e decorações se adequavam ao seu próprio tamanho.
            - Será que já estive aqui alguma vez? – se indagou ela em pensamentos. – Será essa mulher, ou seja lá o que for, a minha mãe? Somos tão diferentes. – pensou ela -  Isso seria impossível.
            Nisso sentiu aquela grande mão tocando seu tornozelo e logo depois um anel frio o envolvendo. Eram correntes. Estavam agora presas em seus pés.
            - O que é isso? – questionou a menina, agora pasma.
            - Estou me certificando de que você estará sempre aconchegada e protegida debaixo das asas de sua grande mama.
            - Mas isso é injusto! – replicou a menina com indignação e raiva.
            - É para o seu próprio bem. – respondeu a gigante, saindo do quarto e fechando a porta.
            Só o que pode ver foi a gigante dando-lhe as costas e porta fechando bem à sua frente. Depois o quarto foi tomando por um silêncio mortal, quebrado apenas por um curto diálogo do lado de fora.
            - Será que isso é mesmo necessário? – perguntou a mulher com uma voz entristecida.
            - Acho até que você deveria jogar fora a chave. – responde uma voz renitente já se distanciando.
            Não se ouviu mais nada. O silêncio voltou a reinar no ambiente.
            Agora ela estava presa e não sabia nem o porquê. Mesmo que fosse para seu bem, como afirmara a gigante, ela tinha o direito de fazer aquilo? Podia ela roubar-lhe o único bem que lhe restava – sua própria liberdade?
            Uma lágrima escorreu de seu rosto – carregada de toda frustração que ela vivia nesse momento. – Contudo, sua “carcereira” era forte demais. Rebelar-se seria inútil. Talvez fosse melhor aprender a conviver e tirar proveito daqueles acontecimentos. Mesmo decidida a usar a situação a seu favor aquilo não lhe agradava nem um pouco. Aos poucos seu terno sorriso foi se esvaindo de seu rosto. Só o que tinha era um semblante triste, que perduraria por todo o tempo que passasse ali.
            Cansada, ela entregou-se a seu corpo, mesmo depois de muito relutar, caiu sobre a cama e adormeceu. Só assim secaram-se as lágrimas em seu rosto.
            Acordou no dia seguinte com o barulho de leves batidas na porta de seu quarto. Abriu os olhos, passou a mão sobre o rosto para despertar-se completamente. Olhou em direção à porta e ouviu:
            - Venha, meu querido bebê. A mesa já está posta. – disse aquela voz grave.
            Ela se levantou. Tentou ajeitar as roupas – que estavam amarrotadas – usando as mãos. Ajeitou a cama em que havia dormido e dirigiu-se à porta do quarto. Tocou a maçaneta com as suas delicadas mãos, mas não conseguiu abri-la. Era grande demais.
            - Por favor, pode abrir para mim? Eu não consigo. – disse ela batendo suavemente à porta de madeira.
            A maçaneta girou e a porta se abriu. Do lado de fora ela deparou-se com aquela enorme mulher.
            - Como é lindo este meu bebê! – exclamou ela olhando para a garotinha recém desperta.
            - Obrigada! – disse ela – Por tudo. - completou, entrando no jogo da gigante.
            - Ora, isso não é nada, minha querida. Estou feliz de tê-la de volta.
            A garota acenou com a cabeça, deu um sorriso, mas quem o visse saberia facilmente dizer que não era sincero.
            - Também estou bem por estar aqui. O único problema é que não tenho nenhuma lembrança desde que acordei ontem. É como se tudo fosse completamente novo pra mim. – disse ela um pouco confusa e nervosa – Não me lembro desse lugar, da senhora e nem mesmo do meu próprio nome.
            - Meu nome é Shi. Mas prefiro que você me chame de mama – disse a imensa mulher com uma expressão meio desconfiada.
            - E meu nome? A senhora poderia me dizer? – perguntou a menina.
            - O seu nome não importa. – respondeu Shi, já impaciente com a conversa. – Só precisa saber que é o meu querido bebezinho. – suavizando novamente a voz.
            - Vamos descer. Você deve estar com fome. - disse a mulher se virando e começando a andar em direção de uma escada ao fim do corredor.
            A garota consentiu com a cabeça e saiu do quarto. Olhou a sua volta para conhecer o lugar onde estava. Era um palacete enorme. Com dois andares, dos quais as paredes mediam mais do que o dobro de paredes normais. Ela estava num grande corredor por onde se chegava a três quartos, um banheiro, e uma escada que descia até a sala de estar. Embaixo havia essa sala que se conectava diretamente à sala de jantar que, por sua vez, levava à enorme cozinha e a um corredorzinho, com um banheiro e um quarto de bebê.
            Ela seguiu por todo o corredor e começou a descer as escadas. Fez isso com grande dificuldade – os degraus tinham quase o seu tamanho.
            Chegando ao andar abaixo ouviu uma voz de criança, porém num tom mais grave:
            - Um rato, mama. – disse o garotinho de quase dois metros.
            - Já disse que não têm ratos aqui1 – respondeu Shi impaciente.
            - Mas... eu vi. – insistia o garotinho – Ele até brincou comigo.
            Shi estava farta daquela discussão. Todos os dias ele falava desse tal rato. Mas, por mais que ela procurasse nunca o havia visto.
            - Há mais alguém nessa casa além de nós? – perguntou a garota, quebrando seu silêncio com certa timidez.
            - Nê, você voltou! – exclamou o garotinho quando ouviu a voz da menina e a viu.
            Será que de fato já estivera ali? Todos a tratavam como uma conhecida de longa data. Porém, ela não se lembrava de nada. E, se todos a tratavam tão bem, por que havia fugido? Aquilo estava começando a incomodá-la.
            - Não. Aqui somo só meus dois bebês e eu. – Respondeu Shi.
            Então de quem era aquela voz renitente que respondera a Shi que ela deveria jogar fora as chaves das correntes? Pensou a garota bastante confusa.
            Ela se lembrou das correntes. Olhou para seus pés e seus grilhões ainda estavam lá. Eram longos o suficiente para que ela pudesse andar por toda a casa. Contudo, ela não queria estar presa. Queria poder sair pelo mundo. Conhecê-lo e saber qual era a sensação de tê-lo em suas mãos.
            - Vamos comer – disse Shi ao colocar o último talher na mesa.
            Sentaram-se os três à mesa. A gigante na sua enorme cadeira. O garotinho em uma cadeira infantil, feita sob medida para ele. A garota em uma pequenina cadeira – se comparada ao resto da casa - com tamanho proporcional ao seu e aos dos talheres e louças que ela deveria usar. Por alguns instantes o único som que se ouvia era o dos talheres tocando os pratos.
            Logo que terminaram de comer, o garoto – com um sorriso no rosto – virou-se para a menina e perguntou:
            - Vamos brincar?
            Antes mesmo que ela pudesse responder, Shi falou com sua voz imponente:
            - Vá brincar com seu irmão.
            Sem questionar a garota o fez. Pegou os enormes brinquedos e foi brincar com o imenso bebê.
            Ela passou o dia todo brincando com ele. Divertiu-se um pouco, mas isso não era o suficiente para livrá-la daquela tristeza.
            À noite ela estava de volta ao quarto. Solitária e triste. Sentiu uma lágrima escorrer pelo seu rosto. Ela chorou.
            Nos outros dias a rotina seguiu o mesmo curso. Contudo, parecia que a hospitalidade dos primeiros dias estava se esgotando. Com o tempo a gigante tornara-se mais rude. Limitava cada dia mais o espaço da garota. Ela tinha que ajudar a limpar a casa, cuidar e brincar com o bebê, ajudar a imensa mulher em tudo que ela pedia, – talvez “ordenasse” fosse a melhor palavra – sem que sobrasse um tempo pra ela mesma. Um tempo para que ela pudesse fazer coisas que fossem satisfazê-la.
            Aos poucos as frases “Vá limpar.”, “Me ajude aqui.”, “Vá brincar com seu irmão.” passaram a soar como marteladas em sua cabeça. Não aguentava mais. Queria ter um tempo pra ela mesma. Para poder fazer tudo aquilo que ela tinha vontade. Queria poder sair pra conhecer o mundo. Queria poder sentir de novo a brisa tocando seu rosto – pois desde que chegara ali nunca mais pudera sair. Estava se sentindo como numa prisão. Ela simplesmente não tinha vez pra nada. Só o que podia fazer era seguir ordens. Será que ninguém se preocupava com seus sentimentos? Teria sido aquele o motivo da sua suposta fuga? Talvez sim. – foi o que ela pensou.
            Se ela tinha fugido uma vez poderia fazê-lo novamente. Começou a planejar uma fuga. Durante alguns dias, enquanto realizava seus serviços, começou a procurar ferramentas ou objetos que pudessem ajudá-la na fuga.
            Um dia, enquanto limpava o quarto da mulher, ela encontrou a chave do baú em que estavam guardadas as correntes. Tomou-a pra si e a escondeu. Talvez pudesse encontrar a chave que abrisse seus grilhões. Esperou até à noite enquanto todos estivessem dormindo e abriu o baú. Lá estava a chave do cadeado que a prendia. Era sua chance. Não podia contar com outro descuido daqueles. Pegou a chave e livrou-se das correntes.
            Contudo, ouviu um barulho. Pareciam pequenas unhas batendo no chão. Correu para ver o que era. Era um rato. Ele corria em direção ao quarto da mulher. Ela foi atrás dele para tentar impedi-lo, mas era tarde demais. Ele já havia entrado no quarto.
            O pequeno animal subiu na cama da enorme mulher e foi até a orelha dela.
            - Ela está fugindo. Acorde! Vá atrás dela. – disse ele com sua voz renitente.
            Era a mesma voz que ela tinha ouvido aquela vez. O garotinho estava certo. De fato havia um rato na casa.
            A gigante se levantou num salto, como quem desperta de um pesadelo – o que ela realmente havia pensado ser - e foi até o quarto conferir se a menina estava lá.
            Ao ouvir os passos da mulher a garotinha pôs-se a correr. Chegou ao fim do corredor e tentou descer as escadas. Porém, a casa era grande demais pra ela.
            Shi, ao ver que a porta do quarto da menina estava aberta e as correntes estavam soltas ao chão, foi em direção a escada. Antes que a garota pudesse terminar de descê-la ela a encontrou. Tomou-a em seus braços – com força- e a levou até o seu quarto. Empurrou-a bruscamente, derrubando-a no chão. Virou-se e trancou a porta.
            Agora estava pior. Não podia sequer sair do quarto. Se antes ela já se sentia triste, daquele momento em diante sua vida tornou-se uma profunda solidão. Passava os dias trancada, chorando e imaginando o mundo lá fora, e tudo que poderia viver se não estivesse presa ali.
            Alguns dias se passaram e ela continuava presa. Vivendo sua constante e melancólica solidão. Às vezes, quando estava chorando, pensava ouvir barulho na porta do quarto, mas quando se aproximava para averiguar o que quer que estivesse lá já havia saído.
            Entretanto, um dia a garota foi surpreendida por um barulho na fechadura. Alguém estava abrindo aporta. Ela se afastou e estava um pouco acuada. Esperando que Shi entrasse. Porém, não foi a gigante quem entrou, mas sim o bebê.
            - Nê, você está aí? – perguntou ele, procurando-a pelo quarto.
            - Sim. Estou aqui. – respondeu ela, se aproximando do garotinho.
            - Eu te ouvi chorar por todas essas noites. – disse ele – Você não está feliz aqui.
            - Então era você que eu ouvia às vezes. – respondeu a menina.
            - Eu sei que você está triste e que a mamãe quem te faz chorar. – continuou ele – Mas, a culpa não é dela. É do rato. É ele quem faz com que ela fique assim com você. Ele vai até o quarto dela todas as noites e coloca coisas na cabeça dela. Só que ela não acredita.
            - Eu vi o rato naquela noite. – respondeu ela.
            - A mamãe, no fundo, é uma pessoa legal. – respondeu o grande menino – Mas, enquanto o rato ficar falando na cabeça dela sem que ela perceba ela vai te fazer sofrer. E, eu não quero que você sofra. Por mais que eu esteja feliz por você estar aqui eu não posso te ver chorar todas as noites.
            A menina engoliu o choro. Olhou para o garotinho e esperou que ele continuasse.
            - Vou deixar que você saia. Aproveite que já é quase dia e vá. Um dia ela vai perceber que tudo aquilo que o rato disse para ela era mentira. – continuou o menino – Quando esse dia chegar você poderá voltar.
            - Obrigada! – respondeu a menina.
            Ele a conduziu até o andar debaixo e abriu a porta. Abraçou-a fortemente e, enquanto uma lágrima caía de seus grandes olhos, ele disse:
            - Vou sentir sua falta!
            Ela não conseguiu se conter. Começou a chorar. Abraçou bem forte o garoto e disse:
            - Obrigada! Eu também sentirei muito a sua falta. Prometo que um dia eu volto.
            A garotinha então partiu. Indo sem olhar pra trás. Era o primeiro passo para conquistar sua liberdade. Contudo, deixava ali um sentimento que jamais imaginara sentir.






*****Pessoal, eu fiquei um tempo parado com esse conto, mas estou editando o terceiro capítulo e logo ele estará no blog.

Um comentário:

  1. imaginava q vc era bom.. mas vc não é bom... vc é ótimo.. adorei.. bjoss
    Thays HAPKI....

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