quarta-feira, 29 de setembro de 2010

O Homem do Espelho

            Eram seis horas da manhã, ele acabara de abrir os olhos. Ficou alguns minutos olhando fixamente para o nada até criar ânimo para se levantar. Sentou-se, esticou os braços e se levantou. Foi até o banheiro, lavou o rosto, escovou os dentes e voltou para o quarto. Cuidou para que não acordasse a mulher, que estava deitada na cama. Acendeu a luz do abajur, pegou suas roupas no guarda-roupas e se trocou. Vestiu-se com aquela desconfortável camisa que sempre usava no trabalho e aquela gravata apertada. Antes de sair fitou sua mulher com um olhar triste e, com o coração frio a beijou.
            – Eu te amo – disse ele.
            Ela nem mesmo o ouviu, mas ele tinha cumprido com sua obrigação.
            Ele desceu, comeu aquele mesmo pão que a empregada doméstica sempre comprava e preparava para ele da mesma forma todos os dias, tomou o seu café, – forte, com duas colheres de açúcar – como de costume. Pegou o paletó e as chaves do carro e saiu.
            Chegou no trabalho. Estavam lá seus colegas, dos quais muitos ele já não suportava ver. Não suportava as mesmas conversas e as mesmas falsidades. Não suportava mais o chefe, que tratava a ele e os outros com desprezo, mas a quem ele sempre devia responder com um sorriso amarelo e um “Está bem, senhor”.
            Trabalhou, fazendo aquele mesmo trabalho de sempre que ele nunca gostara, mas era o que ele tinha e o que o sustentava, aquele que propiciava a ele aquela vida cotidiana e rotineira. Não podia reclamar.
            Foi almoçar no restaurante de costume e fez um prato semelhante ao de todos os dias. Até mesmo o peso, visto na balança, variava pouco. Terminou de comer, tomou seu café, fumou um cigarro e voltou para a empresa, onde terminou o dia sorrindo, ainda que contrariado, para o chefe e os colegas de trabalho.
            Pouco antes das dezenove horas, depois de alguns minutos no trânsito, ele estava novamente em casa. Abriu a porta, pendurou o casaco e as chaves e avisou a mulher da sua chegada. Ela veio e sorriu para ele. Ele sorriu de volta, deu nela um abraço e beijou-lhe o rosto – pois ele sabia que era aquilo que ele devia fazer.
            Conversou com a esposa, jantou e assistiu um pouco de televisão. A mulher, como sempre, foi se deitar mais cedo e ele continuou lá por mais algum tempo. Desligou a TV, pegou o jornal que ficava sobre a mesa da sala e subiu as escadas. Ele gostava de ler as notícias no quarto, antes de dormir. Ligava o abajur e lia as tristes e trágicas notícias dos crimes de violência e na política, que serviam para alimentar ainda mais seus pesadelos.
            Ao fim das escadas ele tomou o corredor que levava ao quarto. Já estava tão acostumado com aquele caminho que nem precisava acender a luz para se guiar. Contudo, nesta vez ele teve que fazê-lo. Assim que chegou no andar de cima o jornal escorregou de suas mãos e caiu, espalhando algumas das folhas. Ele acendeu a luz e se agachou para poder juntá-las.
            Quando se levantou ele viu um espelho ao fundo do corredor, entretanto, não era sua imagem que ele refletia. Então ele se aproximou para ver mais de perto. Fitou o espelho e enxergou através do vidro não o seu reflexo, mas o de um velho decrépito. Um homem sem vontades, ambições ou sonhos.  Um velho, de quem o tempo já havia roubado o vigor e as esperanças, e que de tão conformado apenas viveu... sempre em função daqueles que estavam a sua volta, sempre em função dos outros. Um homem sem realizações, sem alegria e sem brilho.
            Viu então transbordar daqueles olhos e escorrer sobre aquela face uma lágrima. Uma lágrima que era realmente sua, que escorria daqueles olhos vazios e descrentes que eram de fato dele e que choravam o luto por aquele corpo e por aquela vida que eram, na verdade, os seus.



Fim

( )

Vai, mata-me
Fere-me com tua presença
Tortura-me com tua indiferença
Arranca de mim até a última gota de sensatez
Até a última lágrima
Quando, nem para sustentar meu pranto
Forças eu tiver
Ri, orgulha-te
Dessa tua obra vil

domingo, 26 de setembro de 2010

A Dama da Lua

            Era noite de inverno, madrugada fria. Seria possível ouvir o silêncio não fossem as águas que se faziam escutar ao tocar as pedras da margem e a leve brisa que soprava as folhas em seu farfalhar.
            Lá estava ele, sentado à orla, perdido em pensamentos, mergulhado em divagações. Vivia seus momentos de solidão. Observava, com um olhar distante, a Lua. E, assim como as águas molhavam dela o reflexo iluminado, as lágrimas molhavam dele o rosto.
            Olhou para ela. Um brilho prateado e rodeada de estrelas. Estava cheia. Por mais que ele não acreditasse, e poucas fossem as esperanças, ele desejou... Desejou não mais estar só.
            Tão de repente o silêncio se desfez. Por obras do destino ou do acaso ele ouviu uma doce voz lhe sussurrar aos ouvidos. Ele virou-se e a viu. Ela era linda. De uma beleza tão única que ele seria incapaz de descrever. Contudo, nenhuma de suas qualidades seria capaz de se comparar àquele olhar. Olhar que o fascinou, o encantou.
            Ela tocou-lhe o rosto. Ternas eram as carícias daquela delicada mão que o tocara. Ele a tomou em seus braços. Em resposta ela beijou-lhe a face e sorriu. Ele olhou-a nos – olhos que diziam mais do que quaisquer palavras. Ela então, lentamente, os fechou e tocou seus lábios nos dele.
            Sem dizer uma só palavra, ela se foi.
            A Lua havia atendido o seu pedido.
            No fim da noite ele foi incapaz de fechar os olhos. Desejava novamente vê-la, tomá-la em seus braços, beijá-la. Ainda que acordado, sonhou com ela. Ela roubava-lhe os sonhos e os pensamentos.
            No outro dia o sol nem havia se posto e lá estava ele, esperando – aflito – para vê-la.
            Caiu a noite. Outra vez a Lua brilhava cheia em meio ao céu estrelado. Ele estava só. Passavam-se os minutos e as horas. Pouco faltava para o amanhecer e ele continuava só. Ela não viria. Não fazia mais sentido esperar.
            Tomado pelo desespero e insensatez, ele maldisse a Lua, a mesma Lua que outrora atendera seus mais sinceros desejos.
            – Por que despertaste em mim sentimentos se me deixarias novamente afogar em solidão? Por que és tão vil? Por quê? Por quê...?
            Então ao longe ele a viu. Ela caminhava em sua direção. Das lágrimas se fez o sorriso.
            Ele correu para abraçá-la, mas ela tinha um olhar distante e frio. Não lhe disse uma palavra. Ele parou. Sorriu para ela e tentou tocar-lhe a face. Mas, logo que a alcançou, ela se foi. Seus dedos não tocaram nada senão o ar. O sorriso se fez pranto.
            Ele caiu de joelhos. De braços abertos para lua, um olhar de súplica. Queria ter a chance – nem que fosse pela última vez – de, ao menos, ouvir a sua voz.
            Contudo, de nada adiantaram as súplicas. Ele continuou lá – com seus olhos vermelhos e o rosto molhado – esperando, em vão, por aquilo que já havia chegado a um final.

Fim

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

...

Me perguntaram o que eu faço de melhor...


Poderia dizer que sou um bom ouvinte, mas, algumas vezes, sinto mais vontade de falar do que de ouvir.
Poderia dizer que sou um bom amigo, mas, às vezes, magoo, sem querer, aqueles que estão mais próximos.
Poderia dizer que sou um bom conselheiro, mas que experiências eu tenho para aconselhar alguém?
Poderia pensar em dizer que sou bom em muitas coisas, mas a cada dia me parece que em todas elas eu sempre tenho muito mais aprender.
Talvez eu seja um bom aprendiz... ou não. Por bem mais de uma vez eu insisti em um mesmo erro.
Descobrir o que tenho de melhor talvez seja uma missão para toda a vida.

domingo, 19 de setembro de 2010

Noite Rubra

            Como de costume, ele caminha sozinho pela noite. Já havia algum tempo que ele se acostumara a ser um homem solitário. Não tinha familiares, amigos ou amores.
            Ele apenas andava sem rumo. Esperava as horas passarem. Esperava o dia amanhecer.
            Entretanto, aquela não fora uma noite normal. Não como todas as outras. Ao passar perto de um clube ele ouviu uma voz, tão melodiosa e doce que o fez ficar imóvel por alguns instantes apenas para ouvi-la.
            Ele ficou ali – em pé, parado na calçada – até que a música terminasse. Aquilo soou tão bem aos seus ouvidos que o fez adentrar ao lugar. Entrou. Procurou uma mesa ao fundo e se sentou. Ele a viu. Era a mais bela criatura que ele já havia visto. Com uma pele clara e cabelos acobreados. Os olhos eram verdes. Ela era tão perfeita quanto ele jamais havia visto em nenhuma tela dos mais consagrados pintores. Nem eles seriam capazes de reproduzir algo tão belo.
            Por lá ele permanecer durante horas. Não consumiu nada e não falou com ninguém. Só queria contemplar aquela divina beleza. Pouco antes do amanhecer ele partiu.
             Na noite seguinte ele voltou àquele mesmo clube, na esperança de encontrá-la. Ela estava lá. Tão linda quanto na noite anterior. Ele novamente se sentou sozinho ao fundo apenas para assisti-la. Há muito ele não sentia aquela vontade de ver ou estar com alguém. Há muito ele não vivia qualquer tipo de sentimento.
            Suas noites agora tinham mais sentido. Ele sempre a acompanhava. Não importava onde ela fosse se apresentar, ele sempre estava presente – sentado, solitário e em silêncio, ao fundo. Não dizia uma única palavra e sempre partia pouco antes do amanhecer.
            Ela, – num dia em que terminou mais cedo sua apresentação – antes que ele partisse, foi falar-lhe.
            Ele a viu andando em sua direção. Ela era de fato linda. Mais do que parecia, ao longe, no palco.
            - Boa noite! – Disse ela com um encantador sorriso no rosto.
            - Boa noite!
            - Já tem alguns dias que o vejo em meus shows, mas o senhor sempre parte antes do amanhecer. Hoje, que terminamos mais cedo, vim lhe agradecer a presença e saber o seu nome.
            - Que rude eu fui, sequer me apresentei. Me desculpe. Meu nome é Jacques. E como devo chamá-la, senhorita?
            - Me chamo Christine.
            - Um belo nome para uma linda dama.
            - Obrigada!
            - Ouvi tua voz quando passava perto de um clube há alguns dias. Encantei-me. Parei próximo ao estabelecimento somente para ouvi-la. Então decidi entrar. Quando a vi entendi que uma voz tão bela não poderia vir senão de um anjo.
            Ela, com o rosto corado, sorriu.
            - Estou longe de ser um anjo.
            - Não para mim. – Disse ele tomando-lhe a mão esquerda e nela tocando, lentamente, seus lábios.
            Ela se encantou com aquele gesto. Poucos eram os homens que ela conhecia que agiam com tamanha fineza.
            - Desculpe-me, mas tenho que partir. – Disse ele olhando para o relógio.
            - Nos veremos de novo?
            - Não tenhas dúvida. Seguirei tua voz.
            Ele beijou-lhe mais uma vez a mão e partiu. Ela ficou lá, parada, apenas se lembrando daquele elegante homem, daquele perfume e daqueles gestos, que inspirariam seus sonhos daquele resto de noite.
            Na outra noite ele estava lá novamente. Jamais perdia uma única apresentação dela. Mas, antes que amanhecesse, - o show nem havia terminado – ele partiu. Tudo o que ela pode ver foi a imagem dele deixando o lugar. Seu olhar perdera o brilho naquela madrugada.
            Ao fim da apresentação ela recebeu um bilhete.
            - De quem é? – Perguntou ela ao garçom que a entregou o pequeno pedaço de papel.
            - Foi o senhor que estava sentado naquela mesa ao fundo. – Apontou a mesa.
            Ela nem agradeceu. Virou-se, foi até uma parte no palco que ainda estava mais iluminada para ler o bilhete.

            “Gostaria de vê-la amanhã, mas não como estrela. A quero como minha companhia. Estarei esperando por você.
Jacques”

            Ela leu e sorriu. Estava ansiosa por aquele momento que, pelos indícios, aconteceria mais rápido do que ela imaginava.
            No dia seguinte, poucas horas depois do anoitecer, ela chegou. Ele já estava lá, sentado na mesma mesa de sempre. Esperava por ela.
            Conversam. Ficaram ali por um tempo. Depois decidiram sair. Caminharam sob a noite e terminaram juntos, na casa de Jacques. Amaram-se durante toda a noite. Mas, faltando pouco mais de uma hora para o amanhecer ele olhou para ela e disse:
            - Agora você deve ir. O sol já está quase nascendo. Eu te levo em casa.
            Ela não entendia o motivo, porém, como ele sempre partia antes do amanhecer, concordou.
            Eles se trocaram e desceram. Saíram da casa dele. Contudo, logo que puseram os pés para fora do jardim que completava a casa, foram abordados por três homens. Dois deles eram altos e fortes. Um com uma jaqueta de couro e o outro com uma camiseta cavada branca com o símbolo da anarquia; ambos traziam pistolas nas cinturas. O terceiro era mais baixo e mais magro, com cabelos curtos e louros e a barba cerrada. Foi ele quem prontamente agarrou Christine e a tirou do alcance de Jacques.
            - Então este é seu novo brinquedinho? – Disse o homem que segurava Christine.
            - Solte-a, Anton!
            - Por que eu faria isso? É um brinquedo tão bonito. – Respondeu com um sorriso sádico.
            - Deixe-a ir. Senão...
            Antes que pudesse terminar a frase um dos capangas de Anton o atingiu com um soco e imobilizou um de seus braços. O outro veio e segurou seu outro braço e, com um golpe na parte posterior da perna, o fez cair de joelhos.
            - Senão o quê? Vai me matar? – Respondeu o sarcástico homem correndo os dedos pelo pescoço de Christine – Você sabe muito bem que tenho nossas leis a meu favor. A vida dela não vale a vida de qualquer um de nós.
            Então Anton apertou o pescoço de Christine com força.
            - Se você me matar por causa dela você é um homem morto. – Concluiu.
            - Deixe-a ir Anton.
            - E deixar que só usufrua desse sangue tão doce? – Disse ele lambendo o lado direito do rosto de Christine.
            Ela, enojada, cospe-lhe no rosto.
            - Solte-me seu pervertido asqueroso.
            - Cala a boca, sua vadia! - Responde Anton, atirando-a contra o chão.
            Ele a segura pelos cabelos, a levanta, desfere um tapa contra o rosto dela.
            - Comporte-se, sua vagabunda!
            - Pare, Anton! Não a envolva nisso.
            - Não a envolver? Ela já está envolvida, Jacques. Você mesmo se encarregou disso. Agora ela já sabe demais. O melhor a fazer seria matá-la.
            Ele, conduzindo-a pelos cabelos, vira o rosto dela para ele. Olha bem para os olhos de Christine e sorri.
            - Essa sim é uma boa ideia. – Conclui, sorrindo seu sorriso sarcástico.
            - Não faça isso, Anton. – Diz Jacques, completamente aflito.
            - Por favor, não! – Implora Christine – Socorro!
            - Não adianta chorar, vadiazinha...
            Anton, com sua mão direita – como uma garra – ataca o peito dela. Atinge diretamente seu coração. Ela desfalece.
            - NÃO! – Grita Jacques.
            - O sangue dela é de fato tão doce Jacques! – Diz Anton passando a mão, coberta com o sangue de Christine,  na ponta da sua língua.
            Jacques, ao ver a cena, entra em um completo frenesi. Com um movimento feroz e rápido ele solta seus braços. Antes que os capangas de Anton tivessem qualquer reação ele, enfurecido, furtas as pistolas que eles traziam na cintura. Apontando-as para a cabeça dos dois brutamontes ele desfere o golpe de misericórdia.
            Anton tenta fugir. Começa a correr para longe de Jacques. Entretanto, o último, tomado pelo ódio o alcança. Acerta-o com um golpe pelas costas que o derruba. Depois ele o vira e o levanta do chão segurando-lhe pelo pescoço – estrangulando-o com uma força brutal.
            - Se você fizer isso você será um homem morto, Jacques.
            Jacques arranca um pedaço de madeira da cerca do jardim e olha, com os olhos em chamas, para Anton.
            - Então seremos dois...
            Crava então a estaca no peito do maldito assassino e sente o sangue dele escorrendo.
            Ele arremessa o corpo de Anton ao chão e desperta de seu frenesi. Olha para o lado e vê – estendido sobre a grama – o corpo de sua amada Christine. Correu até ela e a tomou nos braços.
            - Christine, foi tudo minha culpa. Me perdoe...
            Ele choraria se tivesse lágrimas, mas não as tinha. Então ele a beijou nos lábios – um beijo de despedida – e a abraçou bem apertado.
            Permaneceu ali, abraçado ela. Pouco faltava até o amanhecer. Quando os primeiros raios de sol surgiram o corpo dela foi, lentamente, caindo ao chão, e o dele – como pó – espalhando-se pelo vento.

Fim

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Desencanto

Sonhei...
Com teu rosto
Que eu jamais havia visto
Com teu toque
Que eu jamais havia sentido
Com teu Beijo
Sonhei...
Perdido em teus encantos
Hipnotizado por tuas palavras
Envolto em tua ternura
Fascinado por teu olhar
Por você me apaixonei... Mas,
Tua distância
Tuas palavras frias
Teu silêncio
Tua indiferença
Fizeram-me descrente
...
Deixei de sonhar
Deixei de acreditar
Numa fria realidade
Meu despertar
Chorei...
Chorei por pensar
Que tudo poderia terminar
Como um sonho,
Que se finda ao despertar

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Persona(s)

            Ele acabara de acordar. Abriu os olhos e pode ver aquele quarto ainda escuro. Virou-se de lado para abraçar a mulher, mas não conseguiu alcançá-la, seu lugar estava vazio. Começou a sentir um cheiro estranho, de sangue. Ele estendeu um dos braços até alcançar o abajur que estava sobre o criado mudo. Acendeu-o. Os lençóis estavam manchados de vermelho. Assustou-se, se levantou da cama e correu até o banheiro para lavar o rosto e ver se estava de fato acordado. Aquilo não era um pesadelo. Tudo o que viu foi seu corpo coberto de sangue.

Um ano antes:

            A esposa abriu a porta do quarto lentamente. Ele estava lá, deitado no escuro e com o rosto molhado de lágrimas.
            - Meu amor, o que houve? – Perguntou ela indo na direção dele para abraçá-lo.
            - Foi tudo minha culpa... – respondeu ele enxugando o rosto com as mãos.
            - Acalme-se, meu bem. Não foi sua culpa.
            - Se eu o tivesse levado comigo nada disso teria acontecido.
            - Mas como você poderia imaginar? Indagou abraçando-o forte e beijando-lhe a o rosto.
            A porta se abriu lentamente, silenciando os dois que estavam abraçados sobre a cama. Ouvia-se apenas o ranger das dobradiças seguido por leves passos que caminhavam na direção deles.
            - Mamãe, por que o papai está chorando? – Perguntou uma garotinha de cerca de cinco anos usando um macacão rosa, que trazia nas mãos uma boneca – Ainda é por causa do maninho? – Completou, enchendo os delicados olhinhos de lágrimas.
            Havia mais de um ano que ocorrera o incidente. A mãe saíra com a filha, fora levá-la ao médico. Ele ficou em casa com o filho mais velho, de quase doze anos. Porém, recebeu uma ligação da espose pedindo que ele fosse buscá-la. Havia começado a chover e não teria como elas voltarem sozinhas.
            - Vamos comigo, filho?
            - Posso ficar? Estou bem no meio do meu jogo novo. – Respondeu o garoto sem sequer desvia os olhos da tela da televisão.
            - Tudo bem, mas cuide-se. Eu volto logo.
            - Ok, pai!
            Ele foi até a garagem, entrou no carro e saiu. A chuva estava realmente ficando forte e o céu cada vez mais escuro. Ele se apressou para encontrá-las antes que ficasse pior.
            Elas o esperavam na porta do consultório médico e, logo que ele chegou, elas entraram no carro. Foram para casa. Em menos de meia hora ele já estava de volta.
            - Meu bem, você deixou o portão da garagem aberto? – Perguntou ela apontando para o mesmo, que não estava completamente fechado. Havia distância para uma passar tranquilamente por ele.
            - Que estranho! Não me lembro de tê-lo parado enquanto fechava. Deve ter emperrado. Mas, como a chuva estava muito forte, eu nem reparei. – Respondeu ele apertando o botão para que o portão se abrisse novamente.
            Ele guardou o carro e tentou fechar o portão, contudo, novamente ele parou no mesmo lugar. Parecia estar, de fato, emperrado. Então ele foi até lá para ver o que tinha acontecido. Quando se aproximou ele viu que havia um toco de madeira impedindo que o portão se fechasse.  Ele agachou e tirou aquilo de lá. O portão se fechou.
            A mulher, que carregando a filha nos braços, já estava entrando em casa, mas parou.
            - O que houve, meu amor?
            Ele, sem dar nenhuma explicação, entrou correndo em casa e chamou pelo filho.
            Havia pegadas de barro na cozinha. Ele as seguiu e viu que estavam por toda a casa. As gavetas e armários da casa estavam revirados.
            - Filho, cadê você? – Gritou ele assustado.
            - O que houve, meu bem? – Perguntou ela, se assustando com o comportamento do marido.
            Ele foi até a sala e viu a televisão e o vídeo-game do filho ligados. Chamou-o novamente e, mais uma vez, ele não respondeu.
            Ele, desesperado, começou a correr pela casa procurando o garoto. Não estava no quarto dele nem no da irmã. Então foi até o seu quarto e da esposa. Lá ele viu uma imagem que ele daria a vida para voltar no tempo e jamais ter que, sequer, imaginá-la. Viu a cena que o assombraria por todos os dias enquanto ele vivesse. Viu o corpo do seu próprio filho estirado sobre a cama.
            - NÃÃÃOOOO!!! MEU FILHO!!! NÃO PODE SER!
            Ele caiu no chão, de joelhos, e começou a chorar desesperadamente. A mulher veio correndo com a filha no colo para ver o que estava acontecendo. Quando chegou na porta e viu o que acontecia ela trouxe o rosto da menina para junto de seu peito - assim ela não veria aquela trágica cena – e chorou vendo o marido com o corpo do filho nos braços.
            - Me perdoe meu filho. A culpa foi toda minha... Eu nunca devia tê-lo deixado sozinho...
            Nada pode ser feito naquele dia para salvar o garoto. Tudo que restava era que a polícia pudesse encontrar o culpado, mas não foi o que aconteceu. O tempo passou e o assassino do filho jamais fora encontrado. Cada dia que passava só fazia aumentar a culpa daquele pai amargurado. Ele chorava dias e noites, quase nunca conseguia dormir. Quando dormia ele acordava desesperado em meio aos seus pesadelos.
            A mulher tentava ajudá-lo. Suprimia sua própria dor para da a ele forças, as últimas que restavam a ela. Entretanto, nada adiantava. Ele estava cada dia pior.
            - Se acalme, minha filha. Não é nada. O papai só está um pouco triste com o sonho que teve, mas já vai passar. – Disse a mulher àquela garotinha vestindo o macacão rosa – Venha aqui. Vamos dar um abraço no papai que, num instante, ele vai estar melhor.
            A menina sorriu, correu e pulou nos braços do pai.
            - Eu amo você, papai!
            Ele usou todas as forças que tinha para tentar esboçar um sorriso. Abraçou as duas e disse:
            - Eu amo vocês! Jamais deixarei que algo ruim lhes aconteça.
            Os três ficaram ali deitados por algum tempo. A garotinha pegou no sono e a mãe aproveitou para levá-la para o quarto dela. Deu-lhe um beijo no rosto e voltou.
            - Querido, eu acho que nós devemos nos mudar daqui. Essa casa não está nos fazendo bem. – Disse ela tomando-o pelas mãos – Acho que devíamos mudar para um outro lugar, uma outra cidade onde as lembranças do que aconteceu não sejam tão constantes. Talvez assim nós consigamos ter mais tempo para nos lembrar das coisas boas que vivemos juntos sem termos que olhar para o local onde tudo aconteceu. Acho que isso te faria bem. Faria bem a todos nós.
            - Talvez você tenha razão. Não há um só canto dessa casa que não me faça lembrar daquele maldito dia... – seus olhos se enchiam de lágrimas novamente.
             Concordaram em se mudar. Prepararam as coisas e, em algumas semanas, - com a ajuda de alguns amigos – se mudaram para uma pequena cidade um pouco distante daquela em que viviam.
            Em poucos dias ela começou a trabalhar como professora numa escola local, a mesma em que a filha começou a estudar. Mas ele, incentivado pela esposa, decidiu não se dedicar ao trabalho por enquanto. Tinham algumas finanças que dariam para algum tempo. Ela achou melhor que ele tirasse um tempo para colocar a cabeça no lugar. Ele aproveitou para fazer algo que sempre tivera vontade, escrever. Porém, sempre ocupado com o trabalho, nunca lhe sobrava tempo para isso, mas agora era hora de um novo começo. Talvez aquilo lhe fizesse bem.
            Ele montou um pequeno escritório em casa. Um lugar só dele, onde ele poderia trabalhar no seu mais novo projeto de vida, seu livro. Lá ele passava horas e horas escrevendo. Se inspirava nas boas lembranças que tivera coma família e o filho para escrever. Sempre que as memórias do incidente lhe vinham aos pensamentos ele segurava o choro e se forçava a pensar em outra coisa para se distrair.
            Voltaram, em pouco tempo, a viver como uma família. Ele não estava mais tão alheio e confuso como passara o último ano. A nova vida estava fazendo bem a todos eles.
            Contudo, alguns meses depois, a mulher e a filha começaram a ficar um pouco distante dele. Elas pareciam cada dia mais secas e ariscas com ele.
            - Meu bem, por que você tem estado tão distante de mim nesses últimos dias?
            Ao ouvir a pergunta ela olhou pra ele – num suspiro – com olhos tristes e profundos e perguntou:
            - Você realmente não se lembra do que aconteceu naquele dia?
            Ela se referia ao dia em que a filha se machucara enquanto passeava com ele no parque. Ela voltara para casa com hematomas por todo o corpo e disse ter caído enquanto corria.
            - Não me lembro. Às vezes me esforço, mas não consigo. Só me lembro de ter sápido com ela. Depois parece que está tudo apagado, escuro. Me recordo, somente, de quando já estávamos em casa.
            - Tudo bem, querido. Vamos esquecer isso.
            - Não, meu bem. Diga. O que está havendo?
            - Não é nada, amor. Só tenho estado um pouco triste nesses últimos dias, mas vai passar.
            Então ela tocou-lhe o rosto com as mãos e beijou seu rosto para acalmá-lo e terminar o assunto. Eles adormeceram.
            Na manhã seguinte ele se levantou mais cedo, preparou o café e levou para ela na cama. A despertou com um beijo. Ela até parecia ter esquecido a tensão do dia anterior. Eles comeram juntos e conversaram.
            - Meu amor, você não gostaria de ler o que eu estou escrevendo?
            - Você está falando sério? – Ela perguntou surpresa – Você disse que não queria que ninguém lesse até que estivesse terminado.
            - Acho que vai ser bom compartilhar isso com você.
            Terminaram de comer e foram até o escritório. Ele deixou que ela se sentasse e ligou o computador. Ela estava ansiosa para ver. Ele mostrou para ela o arquivo e ela abriu. Começou a ler.
            Ela estava com um sorriso no rosto que, subitamente, se desfez. Então ela levou a mão esquerda à frente da boca – numa expressão de espanto – e lágrimas escorreram do seu rosto.
            - Meu amor, o que está acontecendo com você?
            Ele não estava entendendo aquela reação dela, o por que dela estar daquele jeito.
            - O que houve, meu bem?
            - Primeiro aquilo no parque, agora isso...
            - isso o quê?- Perguntou ele correndo para ver o que ela estava vendo na tela do computador.
            Era realmente o livro que ele estava escrevendo. Mas, da primeira até a última página, apenas se repetiam as frases:
           
            “Você deixou o seu filho morrer. A culpa é toda sua. Você é um monstro!”

            Ele não conseguia compreender. Não se lembrava de ter escrito aquilo. Muito pelo contrário. Se lembrava de ter escrito grande parte da história. Procurou por algum outro arquivo no computador em que pudesse estar aquilo de que ele se lembrava ter escrito, mas não encontrou. Se ele escrevera aquilo de onde vinham suas memórias?
            - Querida, - disse ele assustado e com lágrimas descendo pela sua face – eu não me lembro disso. Eu tinha escrito uma história. Eu juro! Você precisa acreditar em mim...
            - Meu amor, você precisa de ajuda. Você, realmente, precisa de ajuda... Você não está bem.
            - Meu bem, - estava nervoso e trêmulo com a pergunta que ia fazer – o que realmente aconteceu aquele dia no parque?
            - Você ficou muito nervoso com a nossa filha quando ela deixou a boneca que ela havia levado para o passeio cair ao chão. Então - dizendo que ela não tinha cuidado com aquilo que era importante para ela – você a agrediu. Ao menos foi  o que ela me disse depois de eu muito insistir para que ela me contasse a verdade.
            - Meu Deus, eu sou um monstro! O que foi que eu fiz?
            - Acalme-se, meu bem. Você só está doente. Precisa se tratar.
            - Não! Eu sou um monstro!
            Então ele saiu correndo de casa, desesperadamente. Ela tentou falar com ele, acalmá-lo, mas foi em vão. Ele saiu maldizendo e amaldiçoando a si mesmo. Correu por um tempo, foi até um rio ali perto. Precisava terminar logo com aquilo. Se jogou no rio.
            Ele acordou. Sentiu o colchão macio sob suas costas e viu o quarto, ainda escuro.
            Que alívio! Pensou. Teria sido tudo um pesadelo. Nada daquilo teria realmente acontecido.
            Ele se virou de lado e tentou abraçar a esposa. Ela não estava lá. Ele sentiu cheiro de sangue, acendeu o abajur e viu o lençol manchado. Foi até o banheiro e viu seu corpo coberto de sangue.
            Ele se desesperou. Não sabia o que estava acontecendo. Será que tudo aquilo que ele pensou estar sonhando tinha, realmente, acontecido? O que ele teria feito com a mulher e a filha? Ele correu até o quarto da menina, mas não encontrou nada. Procurou pela casa toda e elas não estavam. Só restava um lugar para ir, seu escritório.
            Ele foi, lentamente, até a porta e tentou abri-la. Estava trancada. Procurou pelas chaves onde ele costumava guardá-la, porém não as encontrou. Então, num movimento automático, levou a mão ao bolso e retirou de lá um pequeno molho de chaves, onde estava a chave do escritório.
            Ele, trêmulo, colocou a chave no trinco e destrancou a porta. Girou a maçaneta vagarosamente – já esperava o pior – e abriu a porta.
            Os corpos das duas estavam entrelaçados no chão do escritório, como se a mãe estivesse abraçando a filha para protegê-la.
            As paredes do escritório estavam inteiras escritas com sangue. O sangue da sua mulher e da sua filha.  Se repetia uma única palavra:

            “MONSTRO!”

            Ele viu aquela cena e caiu ao chão. Estava atônito. Tremia ainda mais agora.
            - Isso não pode continuar! – Disse pra si mesmo.
            Em cima da escrivaninha estava a faca que ele teria usado para tirar dele mesmo o que de mais valioso ele tinha. Olhou mais uma vez para os corpos delas. Pegou o instrumento cortante, segurou-o com toda a força que tinha e – para punir-se – cravou-o em seu próprio coração. O seu sangue escorreu pelas suas mãos e seu peito. Ainda com os olhos cheios de lágrimas ele pereceu. Entretanto, já era tarde demais para se redimir de seus pecados.

Fim