sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Brincando de Machado Pt. I

            Confesso, caro leitor, que fui devidamente influenciado pelo narrador machadiano. Ainda que essa angústia me corroesse por dentro e me tirasse o sono todas as noites, se eu não tivesse me deparado com as palavras de Bentinho, seus medos, vontades, ainda que sórdidas, e suas cismas, eu jamais me atreveria a contar aqui o que se segue.
            Entretanto, antes que continues lendo, eu alerto que ainda tens a opção de parar, de não conhecer a vil história desse narrador que vos fala. Tens por escolha deixá-la se perder no tempo e morrer antes mesmo que esse miserável a quem deste atenção até aqui.
            Se lês esta frase, leitor, é porque insistes em conhecer o meu lado mais escuro, os meus pensamentos mais desprezíveis, os meus mais sujos atos. Não posso impedir que o faças, mas lembra-te de que escolheste por si só, mesmo que por mais de uma vez eu o tentasse convencer do contrário.
            O ano era mil oitocentos e oitenta e nove, eu era de família bem de vida. Não éramos deveras ricos, mas papai contava com seus quase vinte escravos em sua pequena propriedade – ao menos até que assinassem aquela maldita lei. Não julguem-me ainda,  sempre fui à favor das causas abolicionistas. Admito, contudo, que não teria sido se pudesse saber o que me aconteceria poucos anos depois. Teria me vingado dos negros antes mesmo que tudo acontecesse, apenas para ter certeza de tê-los punido o suficiente pelas minhas dores. Esse, porém, é um assunto para mais tarde.
            O que deves saber do referido ano é que eu acabara de me formar, estudara as ciências contábeis. Como papai se encontrava doente e os escravos haviam sido libertos ficara difícil para que ele mantivesse os cuidados das finanças. Assumi os negócios. Tentei manter nossas dignidade e condição social tão boas quanto antes. Encontrei no começo algumas dificuldades, mas me saí bem. Conheci muita gente, velhos conhecidos de meu pai - fazendeiros, ex-senhores de escravos e também muitos comerciantes. Apesar de não termos, naquela época, muitas terras, papai era um ótimo negociador, sempre conseguia bons preços compradores de tudo que produzíamos.
            Fiz importantes amizades; mostrei-me um homem inteligente, culto e maduro, apesar de ainda jovem. Tinha tino para negócios. Era também bem-apessoado, como costumava dizer Dona Gertrudes - uma negra que desde sempre trabalhara para mamãe e continuara mesmo depois da abolição; era praticamente da família -, falava que não entendia um rapaz tão bem-apessoado como eu não ter ainda conseguido uma prenda. Talvez estivesse certa. Não tardou muito para os velhos amigos da família demonstrarem interesse em ver-me enamorado de suas filhas moças. Alguns deles chegavam a torcer os bigodes ao falar ao outro que sua própria filha era o melhor partido, apenas no intuito de me impressionar.
            Perdoem-me pela prolixidade. Detive-me a contar muito sobre mim e minhas histórias que esqueci-me de porque estou aqui e, principalmente, de porque estás aqui. Não queres saber da vida de trabalho desse que vos fala. Anseias por aquilo que até hoje escondi. Desejas penetrar à minha alma nos seus pontos de maior sordidez. Sei que não admitirás, leitor. Tua vontade de se fazer bom aos olhos dos outros é mais forte que tua curiosidade, ainda que essa última te consuma por dentro. Mas eu sei leitor, sou tão humano quanto tu. Tão hipócrita também.
            Vamos direto ao que realmente importa daquele ano. Foi numa tarde de primavera, mais precisamente o calendário contava os vinte e oito dias do mês de setembro. A filha de João Moreira, conhecido de meu pai de longa data -  que, sabendo que eu estava formado e fazia um bom trabalho com as finanças da família, a pediu que viesse ter a mim; precisava de meus serviços -, bateu na porta de casa. Gertrudes estava  ocupada ajudando mamãe em seus afazeres; fui eu mesmo atender ao chamado.
            Há muito não a via. Quando a conheci nem era moça ainda, brincava de bonecas. Confesso que espantei-me. Ela não era mais aquela menina com voz estridente que eu conhecera outrora. Era uma bela mulher. Tinha cabelos longos, castanhos escuros e ondulados, desciam abaixo dos ombros, a pele clara, mas queimada de sol, olhos negros, como uma pedra ônix, lábios carnudos, me hipnotizaram – tive vontade de senti-los junto aos meus. Precisou repetir mais de uma vez o que viera me dizer para que eu a compreendesse.
            Acredito que tenha percebido meu desconcerto, pois, depois de dizer-me o que lhe pedira o pai, já de costas para partir, virou o rosto em minha direção e sorriu.
            Aquela boca, aqueles olhos, aquele sorriso me tiraram a concentração pelo resto do dia. Imaginava-me tomando-a nos braços e trazendo-a junto a mim; ansiava por sentir o toque dos seus lábios. Lábios que me roubaram o sono; os mesmos que desejei durante toda a noite.
            No dia seguinte, nem bem amanhecera, saí. Fui até a casa de João Moreira. Fui falar-lhe pessoalmente sobre o trabalho que gostaria que eu fizesse. No caminho, parei. Tomei um café. Tive um dedo de prosa com alguns conhecidos e continuei. Não eram ainda nove horas e eu já estava lá. Bati à porta; fui atendido. Uma senhora negra, roliça, já com seus cinquenta e tantos anos, foi quem abriu. Era Zulmira, que assim como Gertrudes era para mamãe, ela era para a senhora Moreira, também como se fosse parte da família.
            - O Sr. Moreira está?
            - Está.
            - Poderia chamá-lo? Diga-lhe que é José de Azevedo, filho de Joaquim de Azevedo, seu velho conhecido. Vim falar-lhe sobre o serviço que sua filha foi-me requisitar ontem, em seu nome.
            - Pois só um momento, Sr. Azevedo.
           Ela entrou, foi balançando aquelas grandes ancas. Voltou em alguns momentos e disse-me que o senhor João me aguardava.
            Eu entrei e fui falar-lhe. Enquanto andava pelos cômodos e longos corredores procurei com os olhos, pela casa toda, por Anita, – sim, esse era o nome daquela que me roubara o sono – mas ela não estava. Senti-me desconfortável. Não tinha nada mais para dizer do que aquilo já pedira a filha que lhe dissesse. Tudo aquilo não passava de uma desculpa para poder vê-la novamente. Todavia, ela tinha ido à feira com a mãe. Demorar-se-iam um pouco, foi o que me disse o Sr. Moreira.
            Falei-lhe pouco. Não muito mais do que ele já sabia. Inventei um compromisso para não aceitar o café que me oferecera e quis partir. Levantei-me, despedi-me, peguei o chapéu e saí. Disse que voltaria outra hora para combinarmos o trabalho e o preço. Ele ficou agradecido com minha visita, falou que não esperava que eu fosse tão cedo até lá. Confessou ter sentido em mim bastante responsabilidade, que acreditava ter escolhido a pessoa ideal para o trabalho.
            Nessa hora me senti culpado. Não fosse sua filha ter ido me falar eu me demoraria pouco menos que uma semana para atender-lhe o chamado. Contudo, a culpa não durou muito. Aliás, durou poucos segundos. Desapareceu instantaneamente quando, saindo pelo portão, dei de cara a Sra. Moreira e Anita. Cumprimentei-as. A mãe foi gentil, mas a garota foi um pouco seca. Timidez, provavelmente. Penso isso porque, logo que conseguiu deixar que a mãe ficasse um só passo a frente, ela se virou e novamente me sorriu.

9 comentários:

  1. Excelente texto. E Machado podia facilmente tê-lo escrito. Posso não ser uma grande conhecedora da literatura brasileira (minha culpa, toda minha), mas eu reconheci quase todas as características dele de que me lembro aí.
    Espero que não se importe se eu anexar seu blog à lista de "sites e blogs que visito com frequência" do meu blog, pois é exatamente o que pretendo fazer.

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  2. oxa Taís, nunca me importaria, muito pelo contrário. Fico honrado com isso.
    Mas o texto tem bastante características do Machado, sim. Inclusive isso de alertar o leitor para não ler, ele faz em uma parte de Dom Casmurro, não me lembro qual. Por isso eu coloquei o título de "Bricando de Machado", a ideia do texto não é ser original e sim escrever como ele uma história baseada no movimento realista. ^^
    Obrigado novamente por acessar o blog. ^^

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  3. Mais um comentário infame meu, mas, meu caro, a cada dia estás escrevendo melhor e esse último foi sua melhor obra que li até agora. Continue assim, Durt.

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  4. Sensacional!
    "Tua vontade de se fazer bom aos olhos dos outros é mais forte que tua curiosidade, ainda que essa última te consuma por dentro. Mas eu sei leitor, sou tão humano quanto tu. Tão hipócrita também."
    Você leu minha mente! =p

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  5. Espetacular. Fico te devendo o livro. Que, aliás, já são dois.

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  6. Teu melhor trabalho até agora... E, sim, percebe-se a influência de Machado ^^
    Espetacular!
    Parabéns Edu =)

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  7. É muito bom esse reconhecimento. Agradeço mesmo todos que leram e gostaram. Vocês em dão forças para continuar escrevendo. ^^

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  8. Muito bom o seu texto, Edurt. A influência é notada com clareza, mas ainda sim deixar-te a sua marca no texto. Estarei acompanhando as publicações,e comentando cada uma delas.

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