quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Persona(s)

            Ele acabara de acordar. Abriu os olhos e pode ver aquele quarto ainda escuro. Virou-se de lado para abraçar a mulher, mas não conseguiu alcançá-la, seu lugar estava vazio. Começou a sentir um cheiro estranho, de sangue. Ele estendeu um dos braços até alcançar o abajur que estava sobre o criado mudo. Acendeu-o. Os lençóis estavam manchados de vermelho. Assustou-se, se levantou da cama e correu até o banheiro para lavar o rosto e ver se estava de fato acordado. Aquilo não era um pesadelo. Tudo o que viu foi seu corpo coberto de sangue.

Um ano antes:

            A esposa abriu a porta do quarto lentamente. Ele estava lá, deitado no escuro e com o rosto molhado de lágrimas.
            - Meu amor, o que houve? – Perguntou ela indo na direção dele para abraçá-lo.
            - Foi tudo minha culpa... – respondeu ele enxugando o rosto com as mãos.
            - Acalme-se, meu bem. Não foi sua culpa.
            - Se eu o tivesse levado comigo nada disso teria acontecido.
            - Mas como você poderia imaginar? Indagou abraçando-o forte e beijando-lhe a o rosto.
            A porta se abriu lentamente, silenciando os dois que estavam abraçados sobre a cama. Ouvia-se apenas o ranger das dobradiças seguido por leves passos que caminhavam na direção deles.
            - Mamãe, por que o papai está chorando? – Perguntou uma garotinha de cerca de cinco anos usando um macacão rosa, que trazia nas mãos uma boneca – Ainda é por causa do maninho? – Completou, enchendo os delicados olhinhos de lágrimas.
            Havia mais de um ano que ocorrera o incidente. A mãe saíra com a filha, fora levá-la ao médico. Ele ficou em casa com o filho mais velho, de quase doze anos. Porém, recebeu uma ligação da espose pedindo que ele fosse buscá-la. Havia começado a chover e não teria como elas voltarem sozinhas.
            - Vamos comigo, filho?
            - Posso ficar? Estou bem no meio do meu jogo novo. – Respondeu o garoto sem sequer desvia os olhos da tela da televisão.
            - Tudo bem, mas cuide-se. Eu volto logo.
            - Ok, pai!
            Ele foi até a garagem, entrou no carro e saiu. A chuva estava realmente ficando forte e o céu cada vez mais escuro. Ele se apressou para encontrá-las antes que ficasse pior.
            Elas o esperavam na porta do consultório médico e, logo que ele chegou, elas entraram no carro. Foram para casa. Em menos de meia hora ele já estava de volta.
            - Meu bem, você deixou o portão da garagem aberto? – Perguntou ela apontando para o mesmo, que não estava completamente fechado. Havia distância para uma passar tranquilamente por ele.
            - Que estranho! Não me lembro de tê-lo parado enquanto fechava. Deve ter emperrado. Mas, como a chuva estava muito forte, eu nem reparei. – Respondeu ele apertando o botão para que o portão se abrisse novamente.
            Ele guardou o carro e tentou fechar o portão, contudo, novamente ele parou no mesmo lugar. Parecia estar, de fato, emperrado. Então ele foi até lá para ver o que tinha acontecido. Quando se aproximou ele viu que havia um toco de madeira impedindo que o portão se fechasse.  Ele agachou e tirou aquilo de lá. O portão se fechou.
            A mulher, que carregando a filha nos braços, já estava entrando em casa, mas parou.
            - O que houve, meu amor?
            Ele, sem dar nenhuma explicação, entrou correndo em casa e chamou pelo filho.
            Havia pegadas de barro na cozinha. Ele as seguiu e viu que estavam por toda a casa. As gavetas e armários da casa estavam revirados.
            - Filho, cadê você? – Gritou ele assustado.
            - O que houve, meu bem? – Perguntou ela, se assustando com o comportamento do marido.
            Ele foi até a sala e viu a televisão e o vídeo-game do filho ligados. Chamou-o novamente e, mais uma vez, ele não respondeu.
            Ele, desesperado, começou a correr pela casa procurando o garoto. Não estava no quarto dele nem no da irmã. Então foi até o seu quarto e da esposa. Lá ele viu uma imagem que ele daria a vida para voltar no tempo e jamais ter que, sequer, imaginá-la. Viu a cena que o assombraria por todos os dias enquanto ele vivesse. Viu o corpo do seu próprio filho estirado sobre a cama.
            - NÃÃÃOOOO!!! MEU FILHO!!! NÃO PODE SER!
            Ele caiu no chão, de joelhos, e começou a chorar desesperadamente. A mulher veio correndo com a filha no colo para ver o que estava acontecendo. Quando chegou na porta e viu o que acontecia ela trouxe o rosto da menina para junto de seu peito - assim ela não veria aquela trágica cena – e chorou vendo o marido com o corpo do filho nos braços.
            - Me perdoe meu filho. A culpa foi toda minha... Eu nunca devia tê-lo deixado sozinho...
            Nada pode ser feito naquele dia para salvar o garoto. Tudo que restava era que a polícia pudesse encontrar o culpado, mas não foi o que aconteceu. O tempo passou e o assassino do filho jamais fora encontrado. Cada dia que passava só fazia aumentar a culpa daquele pai amargurado. Ele chorava dias e noites, quase nunca conseguia dormir. Quando dormia ele acordava desesperado em meio aos seus pesadelos.
            A mulher tentava ajudá-lo. Suprimia sua própria dor para da a ele forças, as últimas que restavam a ela. Entretanto, nada adiantava. Ele estava cada dia pior.
            - Se acalme, minha filha. Não é nada. O papai só está um pouco triste com o sonho que teve, mas já vai passar. – Disse a mulher àquela garotinha vestindo o macacão rosa – Venha aqui. Vamos dar um abraço no papai que, num instante, ele vai estar melhor.
            A menina sorriu, correu e pulou nos braços do pai.
            - Eu amo você, papai!
            Ele usou todas as forças que tinha para tentar esboçar um sorriso. Abraçou as duas e disse:
            - Eu amo vocês! Jamais deixarei que algo ruim lhes aconteça.
            Os três ficaram ali deitados por algum tempo. A garotinha pegou no sono e a mãe aproveitou para levá-la para o quarto dela. Deu-lhe um beijo no rosto e voltou.
            - Querido, eu acho que nós devemos nos mudar daqui. Essa casa não está nos fazendo bem. – Disse ela tomando-o pelas mãos – Acho que devíamos mudar para um outro lugar, uma outra cidade onde as lembranças do que aconteceu não sejam tão constantes. Talvez assim nós consigamos ter mais tempo para nos lembrar das coisas boas que vivemos juntos sem termos que olhar para o local onde tudo aconteceu. Acho que isso te faria bem. Faria bem a todos nós.
            - Talvez você tenha razão. Não há um só canto dessa casa que não me faça lembrar daquele maldito dia... – seus olhos se enchiam de lágrimas novamente.
             Concordaram em se mudar. Prepararam as coisas e, em algumas semanas, - com a ajuda de alguns amigos – se mudaram para uma pequena cidade um pouco distante daquela em que viviam.
            Em poucos dias ela começou a trabalhar como professora numa escola local, a mesma em que a filha começou a estudar. Mas ele, incentivado pela esposa, decidiu não se dedicar ao trabalho por enquanto. Tinham algumas finanças que dariam para algum tempo. Ela achou melhor que ele tirasse um tempo para colocar a cabeça no lugar. Ele aproveitou para fazer algo que sempre tivera vontade, escrever. Porém, sempre ocupado com o trabalho, nunca lhe sobrava tempo para isso, mas agora era hora de um novo começo. Talvez aquilo lhe fizesse bem.
            Ele montou um pequeno escritório em casa. Um lugar só dele, onde ele poderia trabalhar no seu mais novo projeto de vida, seu livro. Lá ele passava horas e horas escrevendo. Se inspirava nas boas lembranças que tivera coma família e o filho para escrever. Sempre que as memórias do incidente lhe vinham aos pensamentos ele segurava o choro e se forçava a pensar em outra coisa para se distrair.
            Voltaram, em pouco tempo, a viver como uma família. Ele não estava mais tão alheio e confuso como passara o último ano. A nova vida estava fazendo bem a todos eles.
            Contudo, alguns meses depois, a mulher e a filha começaram a ficar um pouco distante dele. Elas pareciam cada dia mais secas e ariscas com ele.
            - Meu bem, por que você tem estado tão distante de mim nesses últimos dias?
            Ao ouvir a pergunta ela olhou pra ele – num suspiro – com olhos tristes e profundos e perguntou:
            - Você realmente não se lembra do que aconteceu naquele dia?
            Ela se referia ao dia em que a filha se machucara enquanto passeava com ele no parque. Ela voltara para casa com hematomas por todo o corpo e disse ter caído enquanto corria.
            - Não me lembro. Às vezes me esforço, mas não consigo. Só me lembro de ter sápido com ela. Depois parece que está tudo apagado, escuro. Me recordo, somente, de quando já estávamos em casa.
            - Tudo bem, querido. Vamos esquecer isso.
            - Não, meu bem. Diga. O que está havendo?
            - Não é nada, amor. Só tenho estado um pouco triste nesses últimos dias, mas vai passar.
            Então ela tocou-lhe o rosto com as mãos e beijou seu rosto para acalmá-lo e terminar o assunto. Eles adormeceram.
            Na manhã seguinte ele se levantou mais cedo, preparou o café e levou para ela na cama. A despertou com um beijo. Ela até parecia ter esquecido a tensão do dia anterior. Eles comeram juntos e conversaram.
            - Meu amor, você não gostaria de ler o que eu estou escrevendo?
            - Você está falando sério? – Ela perguntou surpresa – Você disse que não queria que ninguém lesse até que estivesse terminado.
            - Acho que vai ser bom compartilhar isso com você.
            Terminaram de comer e foram até o escritório. Ele deixou que ela se sentasse e ligou o computador. Ela estava ansiosa para ver. Ele mostrou para ela o arquivo e ela abriu. Começou a ler.
            Ela estava com um sorriso no rosto que, subitamente, se desfez. Então ela levou a mão esquerda à frente da boca – numa expressão de espanto – e lágrimas escorreram do seu rosto.
            - Meu amor, o que está acontecendo com você?
            Ele não estava entendendo aquela reação dela, o por que dela estar daquele jeito.
            - O que houve, meu bem?
            - Primeiro aquilo no parque, agora isso...
            - isso o quê?- Perguntou ele correndo para ver o que ela estava vendo na tela do computador.
            Era realmente o livro que ele estava escrevendo. Mas, da primeira até a última página, apenas se repetiam as frases:
           
            “Você deixou o seu filho morrer. A culpa é toda sua. Você é um monstro!”

            Ele não conseguia compreender. Não se lembrava de ter escrito aquilo. Muito pelo contrário. Se lembrava de ter escrito grande parte da história. Procurou por algum outro arquivo no computador em que pudesse estar aquilo de que ele se lembrava ter escrito, mas não encontrou. Se ele escrevera aquilo de onde vinham suas memórias?
            - Querida, - disse ele assustado e com lágrimas descendo pela sua face – eu não me lembro disso. Eu tinha escrito uma história. Eu juro! Você precisa acreditar em mim...
            - Meu amor, você precisa de ajuda. Você, realmente, precisa de ajuda... Você não está bem.
            - Meu bem, - estava nervoso e trêmulo com a pergunta que ia fazer – o que realmente aconteceu aquele dia no parque?
            - Você ficou muito nervoso com a nossa filha quando ela deixou a boneca que ela havia levado para o passeio cair ao chão. Então - dizendo que ela não tinha cuidado com aquilo que era importante para ela – você a agrediu. Ao menos foi  o que ela me disse depois de eu muito insistir para que ela me contasse a verdade.
            - Meu Deus, eu sou um monstro! O que foi que eu fiz?
            - Acalme-se, meu bem. Você só está doente. Precisa se tratar.
            - Não! Eu sou um monstro!
            Então ele saiu correndo de casa, desesperadamente. Ela tentou falar com ele, acalmá-lo, mas foi em vão. Ele saiu maldizendo e amaldiçoando a si mesmo. Correu por um tempo, foi até um rio ali perto. Precisava terminar logo com aquilo. Se jogou no rio.
            Ele acordou. Sentiu o colchão macio sob suas costas e viu o quarto, ainda escuro.
            Que alívio! Pensou. Teria sido tudo um pesadelo. Nada daquilo teria realmente acontecido.
            Ele se virou de lado e tentou abraçar a esposa. Ela não estava lá. Ele sentiu cheiro de sangue, acendeu o abajur e viu o lençol manchado. Foi até o banheiro e viu seu corpo coberto de sangue.
            Ele se desesperou. Não sabia o que estava acontecendo. Será que tudo aquilo que ele pensou estar sonhando tinha, realmente, acontecido? O que ele teria feito com a mulher e a filha? Ele correu até o quarto da menina, mas não encontrou nada. Procurou pela casa toda e elas não estavam. Só restava um lugar para ir, seu escritório.
            Ele foi, lentamente, até a porta e tentou abri-la. Estava trancada. Procurou pelas chaves onde ele costumava guardá-la, porém não as encontrou. Então, num movimento automático, levou a mão ao bolso e retirou de lá um pequeno molho de chaves, onde estava a chave do escritório.
            Ele, trêmulo, colocou a chave no trinco e destrancou a porta. Girou a maçaneta vagarosamente – já esperava o pior – e abriu a porta.
            Os corpos das duas estavam entrelaçados no chão do escritório, como se a mãe estivesse abraçando a filha para protegê-la.
            As paredes do escritório estavam inteiras escritas com sangue. O sangue da sua mulher e da sua filha.  Se repetia uma única palavra:

            “MONSTRO!”

            Ele viu aquela cena e caiu ao chão. Estava atônito. Tremia ainda mais agora.
            - Isso não pode continuar! – Disse pra si mesmo.
            Em cima da escrivaninha estava a faca que ele teria usado para tirar dele mesmo o que de mais valioso ele tinha. Olhou mais uma vez para os corpos delas. Pegou o instrumento cortante, segurou-o com toda a força que tinha e – para punir-se – cravou-o em seu próprio coração. O seu sangue escorreu pelas suas mãos e seu peito. Ainda com os olhos cheios de lágrimas ele pereceu. Entretanto, já era tarde demais para se redimir de seus pecados.

Fim

Um comentário:

  1. Carái!!! Excelente... Qual o nome da doença dele? Só pra verificar uns exames do povo aqui de casa!!!

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