domingo, 19 de setembro de 2010

Noite Rubra

            Como de costume, ele caminha sozinho pela noite. Já havia algum tempo que ele se acostumara a ser um homem solitário. Não tinha familiares, amigos ou amores.
            Ele apenas andava sem rumo. Esperava as horas passarem. Esperava o dia amanhecer.
            Entretanto, aquela não fora uma noite normal. Não como todas as outras. Ao passar perto de um clube ele ouviu uma voz, tão melodiosa e doce que o fez ficar imóvel por alguns instantes apenas para ouvi-la.
            Ele ficou ali – em pé, parado na calçada – até que a música terminasse. Aquilo soou tão bem aos seus ouvidos que o fez adentrar ao lugar. Entrou. Procurou uma mesa ao fundo e se sentou. Ele a viu. Era a mais bela criatura que ele já havia visto. Com uma pele clara e cabelos acobreados. Os olhos eram verdes. Ela era tão perfeita quanto ele jamais havia visto em nenhuma tela dos mais consagrados pintores. Nem eles seriam capazes de reproduzir algo tão belo.
            Por lá ele permanecer durante horas. Não consumiu nada e não falou com ninguém. Só queria contemplar aquela divina beleza. Pouco antes do amanhecer ele partiu.
             Na noite seguinte ele voltou àquele mesmo clube, na esperança de encontrá-la. Ela estava lá. Tão linda quanto na noite anterior. Ele novamente se sentou sozinho ao fundo apenas para assisti-la. Há muito ele não sentia aquela vontade de ver ou estar com alguém. Há muito ele não vivia qualquer tipo de sentimento.
            Suas noites agora tinham mais sentido. Ele sempre a acompanhava. Não importava onde ela fosse se apresentar, ele sempre estava presente – sentado, solitário e em silêncio, ao fundo. Não dizia uma única palavra e sempre partia pouco antes do amanhecer.
            Ela, – num dia em que terminou mais cedo sua apresentação – antes que ele partisse, foi falar-lhe.
            Ele a viu andando em sua direção. Ela era de fato linda. Mais do que parecia, ao longe, no palco.
            - Boa noite! – Disse ela com um encantador sorriso no rosto.
            - Boa noite!
            - Já tem alguns dias que o vejo em meus shows, mas o senhor sempre parte antes do amanhecer. Hoje, que terminamos mais cedo, vim lhe agradecer a presença e saber o seu nome.
            - Que rude eu fui, sequer me apresentei. Me desculpe. Meu nome é Jacques. E como devo chamá-la, senhorita?
            - Me chamo Christine.
            - Um belo nome para uma linda dama.
            - Obrigada!
            - Ouvi tua voz quando passava perto de um clube há alguns dias. Encantei-me. Parei próximo ao estabelecimento somente para ouvi-la. Então decidi entrar. Quando a vi entendi que uma voz tão bela não poderia vir senão de um anjo.
            Ela, com o rosto corado, sorriu.
            - Estou longe de ser um anjo.
            - Não para mim. – Disse ele tomando-lhe a mão esquerda e nela tocando, lentamente, seus lábios.
            Ela se encantou com aquele gesto. Poucos eram os homens que ela conhecia que agiam com tamanha fineza.
            - Desculpe-me, mas tenho que partir. – Disse ele olhando para o relógio.
            - Nos veremos de novo?
            - Não tenhas dúvida. Seguirei tua voz.
            Ele beijou-lhe mais uma vez a mão e partiu. Ela ficou lá, parada, apenas se lembrando daquele elegante homem, daquele perfume e daqueles gestos, que inspirariam seus sonhos daquele resto de noite.
            Na outra noite ele estava lá novamente. Jamais perdia uma única apresentação dela. Mas, antes que amanhecesse, - o show nem havia terminado – ele partiu. Tudo o que ela pode ver foi a imagem dele deixando o lugar. Seu olhar perdera o brilho naquela madrugada.
            Ao fim da apresentação ela recebeu um bilhete.
            - De quem é? – Perguntou ela ao garçom que a entregou o pequeno pedaço de papel.
            - Foi o senhor que estava sentado naquela mesa ao fundo. – Apontou a mesa.
            Ela nem agradeceu. Virou-se, foi até uma parte no palco que ainda estava mais iluminada para ler o bilhete.

            “Gostaria de vê-la amanhã, mas não como estrela. A quero como minha companhia. Estarei esperando por você.
Jacques”

            Ela leu e sorriu. Estava ansiosa por aquele momento que, pelos indícios, aconteceria mais rápido do que ela imaginava.
            No dia seguinte, poucas horas depois do anoitecer, ela chegou. Ele já estava lá, sentado na mesma mesa de sempre. Esperava por ela.
            Conversam. Ficaram ali por um tempo. Depois decidiram sair. Caminharam sob a noite e terminaram juntos, na casa de Jacques. Amaram-se durante toda a noite. Mas, faltando pouco mais de uma hora para o amanhecer ele olhou para ela e disse:
            - Agora você deve ir. O sol já está quase nascendo. Eu te levo em casa.
            Ela não entendia o motivo, porém, como ele sempre partia antes do amanhecer, concordou.
            Eles se trocaram e desceram. Saíram da casa dele. Contudo, logo que puseram os pés para fora do jardim que completava a casa, foram abordados por três homens. Dois deles eram altos e fortes. Um com uma jaqueta de couro e o outro com uma camiseta cavada branca com o símbolo da anarquia; ambos traziam pistolas nas cinturas. O terceiro era mais baixo e mais magro, com cabelos curtos e louros e a barba cerrada. Foi ele quem prontamente agarrou Christine e a tirou do alcance de Jacques.
            - Então este é seu novo brinquedinho? – Disse o homem que segurava Christine.
            - Solte-a, Anton!
            - Por que eu faria isso? É um brinquedo tão bonito. – Respondeu com um sorriso sádico.
            - Deixe-a ir. Senão...
            Antes que pudesse terminar a frase um dos capangas de Anton o atingiu com um soco e imobilizou um de seus braços. O outro veio e segurou seu outro braço e, com um golpe na parte posterior da perna, o fez cair de joelhos.
            - Senão o quê? Vai me matar? – Respondeu o sarcástico homem correndo os dedos pelo pescoço de Christine – Você sabe muito bem que tenho nossas leis a meu favor. A vida dela não vale a vida de qualquer um de nós.
            Então Anton apertou o pescoço de Christine com força.
            - Se você me matar por causa dela você é um homem morto. – Concluiu.
            - Deixe-a ir Anton.
            - E deixar que só usufrua desse sangue tão doce? – Disse ele lambendo o lado direito do rosto de Christine.
            Ela, enojada, cospe-lhe no rosto.
            - Solte-me seu pervertido asqueroso.
            - Cala a boca, sua vadia! - Responde Anton, atirando-a contra o chão.
            Ele a segura pelos cabelos, a levanta, desfere um tapa contra o rosto dela.
            - Comporte-se, sua vagabunda!
            - Pare, Anton! Não a envolva nisso.
            - Não a envolver? Ela já está envolvida, Jacques. Você mesmo se encarregou disso. Agora ela já sabe demais. O melhor a fazer seria matá-la.
            Ele, conduzindo-a pelos cabelos, vira o rosto dela para ele. Olha bem para os olhos de Christine e sorri.
            - Essa sim é uma boa ideia. – Conclui, sorrindo seu sorriso sarcástico.
            - Não faça isso, Anton. – Diz Jacques, completamente aflito.
            - Por favor, não! – Implora Christine – Socorro!
            - Não adianta chorar, vadiazinha...
            Anton, com sua mão direita – como uma garra – ataca o peito dela. Atinge diretamente seu coração. Ela desfalece.
            - NÃO! – Grita Jacques.
            - O sangue dela é de fato tão doce Jacques! – Diz Anton passando a mão, coberta com o sangue de Christine,  na ponta da sua língua.
            Jacques, ao ver a cena, entra em um completo frenesi. Com um movimento feroz e rápido ele solta seus braços. Antes que os capangas de Anton tivessem qualquer reação ele, enfurecido, furtas as pistolas que eles traziam na cintura. Apontando-as para a cabeça dos dois brutamontes ele desfere o golpe de misericórdia.
            Anton tenta fugir. Começa a correr para longe de Jacques. Entretanto, o último, tomado pelo ódio o alcança. Acerta-o com um golpe pelas costas que o derruba. Depois ele o vira e o levanta do chão segurando-lhe pelo pescoço – estrangulando-o com uma força brutal.
            - Se você fizer isso você será um homem morto, Jacques.
            Jacques arranca um pedaço de madeira da cerca do jardim e olha, com os olhos em chamas, para Anton.
            - Então seremos dois...
            Crava então a estaca no peito do maldito assassino e sente o sangue dele escorrendo.
            Ele arremessa o corpo de Anton ao chão e desperta de seu frenesi. Olha para o lado e vê – estendido sobre a grama – o corpo de sua amada Christine. Correu até ela e a tomou nos braços.
            - Christine, foi tudo minha culpa. Me perdoe...
            Ele choraria se tivesse lágrimas, mas não as tinha. Então ele a beijou nos lábios – um beijo de despedida – e a abraçou bem apertado.
            Permaneceu ali, abraçado ela. Pouco faltava até o amanhecer. Quando os primeiros raios de sol surgiram o corpo dela foi, lentamente, caindo ao chão, e o dele – como pó – espalhando-se pelo vento.

Fim

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