domingo, 5 de dezembro de 2010

Transtorno de Conduta pt. I

            Eu deveria me sentir culpado, ter remorso, ou qualquer tipo de arrependimento. Entretanto, não foi isso que aconteceu, muito pelo contrário, me sentia extasiado, até esboçava um sorriso nos lábios ao sentir aquele sangue quente escorrendo por entre meus dedos, ao ver aquele corpo desfalecer diante dos meus olhos, ainda suplicante. Sentia-me bem enquanto o via agonizar fazendo suas últimas preces – numa voz trêmula e aflita. Foi em vão. Antes que pudesse terminar de implorar por sua vida eu cravei a faca em seu peito; um golpe fatal.
            Com lágrimas no rosto e aquele olhar de desespero o corpo caiu diante dos meus pés. Lembro-me, como se fosse ontem. Uma cena que nem mesmo o tempo seria capaz de apagar.
            Jamais havia participado de um assalto. Nunca me deixavam ir junto. Diziam que eu ainda era novo demais para isso. Eu me detinha apenas a fazer alguns furtos; tinha que contribuir de alguma forma. Mas eles nunca me permitiam fazer nada que pudesse colocar minha vida em risco. Uma ironia, não? Logo na primeira vez eu fiz algo que eles jamais tiveram coragem de fazer, eu pude sentir o prazer de tirar uma vida com minhas próprias mãos.
            – Por que fez isso? Você é burro! – Gritou Fernando. – Ele nem reagiu. Por que você o matou?
            Apenas olhei para ele, não respondi. A sua boca se movimentava na minha frente, mas eu sequer ouvia seus gritos. Tudo parecia indiferente naquele momento. Não importava o que dissessem, ou gritassem. Nada do que fizessem ou pensassem poderia acabar com a magia daquele momento. Voltei meu olhar novamente para o cadáver e continuei contemplando aqueles olhos de desespero, agora vazios e inexpressivos; mortos.
            Ninguém ali seria capaz de compreender a magnitude daquele momento. Não o culpava, ele jamais deveria ter sentido algo assim. Ser acometido por aquela euforia, um sentimento de completa liberdade. Eu era capaz de ouvir o meu próprio coração, senti-lo pulsando. Meu corpo completamente arrepiado, um estado de êxtase, como se minha existência perpassasse meu próprio corpo, estivesse além; como se eu fosse detentor do poder de decidir entre a vida e a morte. Sentia-me mais próximo de Deus.
            As mãos de Fernando me agarraram pela gola da camiseta, depois me deu um tapa no rosto. Seus olhos estavam carregados de raiva e medo. Ele estava confuso, não sabia o que fazer diante daquela situação. Não sabia o que fazer comigo. Enquanto isso Anderson e Lucas – os outros dois companheiros – apenas observavam ao longe, sem dizer nada.
            – Você tem noção do que você fez? – Gritava Fernando, me segurando pela camiseta – Tem? Agora não é apenas mais um roubo igual essas pessoas já estavam acostumadas, isso foi um assassinato! Você sabe o que isso significa? Por sua culpa, agora a gente ta ferrado! A gente ta ferrado, você ta entendendo? E a culpa é sua!
            Ele estava furioso, mas mais do que isso, ele estava acometido de desespero. Parecia que tudo tinha fugido ao seu controle. Continuava gritando comigo, sem parar. Não tinha nem mesmo se dado conta que deveríamos sair dali antes que alguém pudesse entrar e ver aquela cena. Só se preocupava em vomitar em cima de mim a sua fúria, os seus medos.
            Eu continuei quieto, não disse uma única palavra. Mas acredito que meu olhar teria sido capaz de demonstrar o que eu realmente sentia se ele tivesse tido tempo ou intenção de compreendê-lo. Olhava-o com desprezo. Fernando estava tomando de mim aquele instante, privando-me dos meus sentimentos. Talvez tenha inveja de mim, pensei. Ele jamais fora corajoso o bastante para fazer aquilo. Eu era mais forte, e isso ele não poderia suportar. Senti raiva!
            – Chega, Fernando. Precisamos ir. – Disse Lucas, interrompendo-o. – É melhor a gente dar o fora daqui. Depois você termina com isso.
            Fernando recuperou a razão, voltou a si e me empurrou – foi um golpe forte, me derrubou no chão.
            – Vamos – Disse ele olhando para os dois que estavam parados; voltou o rosto para mim. – Depois a gente acerta isso.
            Eles saíram correndo. Levantei-me rapidamente e fui atrás deles. Eram as únicas pessoas que eu tinha afinal. Todavia, isso não era o suficiente para abrandar o ódio que eu passara a nutrir por Fernando depois de toda aquela humilhação. Não por ele ter me esbofeteado e me tratado como um inútil, isso não importava, sim por ele ter estragado aquele momento sublime, o momento que mudaria a minha vida.

Um comentário:

  1. O título está muito bem elaborado, condizendo ao enredo da história. Uma leve "deixa" de Romantismo da Terceira Geração, mas, mais uma vez, seu texto corresponde às três gerações que sempre predominam em seus textos. São eles: Modernismo, lá do início, onde ainda sofria influências da Literatura do século XIX, Realismo, até porque és um admirador real de Machado, onde os conflitos psicológicos do personagem tiveram seu espaço no texto e, finalmente, a Literatura Contemporânea, marcada pela linguagem coesa e fácil de seu texto. Parabéns, Durt. Mais uma ótima leitura fiz agora.

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