sexta-feira, 6 de agosto de 2010

A Morte em Preto e Branco



            Ainda jovem a Morte bateu-lhe à porta. Ele não tinha chegado nem mesmo aos seus trinta anos. Não havia vivido o suficiente. Seria injusto morrer ali. Foi então que teve uma ideia. Fitou a Morte nos olhos – se é que aquilo que o encarava com um olhar cadavérico podia ser chamado de olhos - e propôs:
            – Por que não fazemos um jogo? Se você vencer eu lhe entrego a minha vida, mas se eu vencer você me deixa escolher o dia em que morrerei.
            – Tua vida já está nas minhas mãos – retrucou a Morte. De que me valeria vencer-te?
            – Pois faça então as suas regras, contanto que não me tome agora a vida, eu aceito.
            A Morte, com um estalo de dedos, fez surgir na frente do homem um tabuleiro de xadrez. As peças brancas o tinham como rei; e o rei das peças negras era ela, carregando sua foice, afiada e mortal, que já tomara de muitos as vidas e de muitos mais a vontade de viver.
            Tomou então com suas mãos pútridas as peças dos reis e disse:
            – Cada jogada ocorrerá num período de três meses. Para cada peça minha que tu tirares eu te concederei um ano a mais até a minha próxima jogada. Porém, a cada peça que eu tomar de ti levarei comigo alguém a quem tu amas. No fim, se eu vencer-te, todos os sacrifícios terão sido em vão e tomar-te-ei a vida. Entretanto, se eu perder, te oferecerei aquilo a que todos os mortais mais cobiçam, algo pelo qual muitos deram suas vidas... a imortalidade.
            Fascinado, de súbito, respondeu:
            – Eu aceito.
            A Morte lhe fez um pequeno corte na mão esquerda e selou o contrato com seu próprio sangue. Um contrato que jamais poderia ser quebrado e que declarava o início do jogo.
            Era o turno dele de jogar. Assim ele fez, moveu sua primeira peça. Num piscar de olhos a Morte desapareceu, deixando apenas as seguintes palavras: “Três meses”.
            Ele estava atônito e pasmo, mas, ainda sim, alegre. Jamais perderia aquele jogo. Quantos teriam feito o que ele fez? Ele acabara de enganar a morte. A imortalidade era, para ele, tão certa quanto a Morte era para todos os outros.
            Três meses se passaram e ela voltou. Como um vulto na noite ela surgiu. Fez então a sua primeira jogada.
            Assim se seguiu durante os dois primeiros anos. Parecia estar tudo sob controle. Até que ela fez a sua primeira jogada mortal, tomou-lhe o primeiro peão, e levou junto o pai do seu desafiante.
            Agora ele estava confuso. Não sabia o que fazer. Não havia pensado naquelas conseqüências. Três meses não eram o suficiente para ele pensar em uma solução.    Contudo, definitivamente, ele não tinha como voltar atrás, havia selado o contrato com seu próprio sangue. Recompôs-se e reformulou sua estratégia. Só havia um jeito de ganhar tempo. Após três meses fez seu ataque. Teria agora um ano até a próxima jogada de sua rival.
            Ao término do último dia do décimo segundo mês ela voltou. Ele já tinha certeza do que ia acontecer. Sua mãe estava doente. Certamente a jogada dela já estava programada. Ele estava certo, perdeu a segunda peça e derramou lágrimas sobre o túmulo de sua mãe.
            Mais três meses se passaram e era a vez dele jogar. Numa jogada desesperada ele tentou ganhar mais um ano. O fez. Tomou da Morte mais uma peça.
            Nesse meio tempo, foi surpreendido com uma notícia que jamais poderia esperar, sua esposa estava grávida. Ele não contava com aquilo. Essa notícia o deixou ainda mais angustiado. Poderia perder seu próprio filho, sangue do seu próprio sangue.
            Ele estava aflito, cada dia que passava era a contagem regressiva para mais uma jogada dela. Mas ela não lhe tomaria outra peça dessa vez, seria insensato. Ela estava montando sua estratégia para pegá-lo, tomar-lhe peças seria atrasar o próprio jogo. Então ele se acalmou. Ela voltaria, jogaria e ele tomaria dela mais uma peça qualquer e ganharia mais tempo. Dois anos e três meses seriam tempo suficiente para pensar em uma solução.
            Então ao fim de um ano ela veio. Para completo espanto dele ela não seguiu a estratégia. Fez uma jogada completamente absurda apenas para lhe tomar uma peça. Falecia de complicações no parto a esposa.
            A morte não estava jogando para derrubar seu rei. Apenas queria lhe tomar peças e, consequentemente, aqueles a quem ele amava. E o próximo alvo seria, com toda certeza, o seu filho, que acabara de nascer.
            O tempo era curto. Tinha apenas três meses pra decidir o que fazer. De nada adiantaria ganhar mais um ano, pois se ele a deixasse jogar novamente ela lhe tomaria uma outra peça; lhe tomaria outro alguém.
            Durante cada dia desse intervalo ele não conseguiu parar de pensar naquele maldito jogo um segundo sequer. Não dormia e mal conseguia comer. Passava horas e horas com seu filho nos braços imaginando o que estaria por vir.
            Os três meses terminaram. Assim que o relógio marcou meia-noite ela apareceu. Veio com seu sorriso sádico e frio dizendo:
            – Faze tua jogada, meu nobre futuro imortal.
            Ele tinha que fazer a jogada. Naquele instante toda sua vida passou diante dos seus olhos. Se lembrou de todos os momentos que vivera com sua mãe e seu pai. Cada palavra, cada toque, cada beijo, cada segundo que passou junto com sua esposa. Mas o singelo sorriso que esboçara em seu rosto desapareceu quando lhe veio à mente as lembranças de cada funeral. Então lhe veio o rosto do seu filho.
            De que valeria a imortalidade se o preço era estar para o todo só e ver aqueles a quem ele amava perecerem diante dos seus olhos? Ele não queria aquilo. Não queria ter que chorar sobre o túmulo do seu filho – uma criança com toda a vida pela frente – como fizera sobre os túmulos do pai, da mãe e da amada esposa.
            Os seus olhos se encheram de lágrimas e medo. Ele tomou o rei branco nas mãos. Apertou-o fortemente e encarou profundamente a morte.
            - Você venceu! - Disse ele.
            Num átimo de coragem ele deitou o seu rei sobre o tabuleiro, entregando o jogo e também a sua própria vida.

Fim

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