terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Batidas Últimas

            Amanhecia. Ele já podia ver bem a cor branca do teto refletindo os primeiros raios de sol que penetravam as frestas da janela. Não pregara os olhos. Ouvira cada passo no corredor, cada chamado de emergência, cada prece, o incessante barulho de seu balão de oxigênio. Escutara cada ruído fraco da sua respiração, cada debilitado pulsar de seu peito. Eram assim todas as noites. Não havia mais volta. Ele sabia disso. Sempre soube. Desde o dia que o levaram pela primeira vez àquele hospital. Desde o dia que lhe entregaram a sua sentença.
            A morte, entretanto, nunca havia sido um problema. Bradava antigos cânticos, capítulos e versículos quando lhe perguntavam dela. Amparava-se em sua “inabalável” fé. Tinha a certeza de que a vida terrena nada era comparada à plenitude da eternidade. Ansiava por ela. Vivia por ela.
            Mas o que estava acontecendo? Por que começara a fraquejar? Por que sentia tanto medo? Por que aquilo que sempre lhe parecera uma recompensa agora lhe roubava o sono, lhe angustiava?
            Nas intermináveis noites em que suas únicas companhias eram seu travesseiro e seu balão de oxigênio, ele se lembrava de cada vez que fora com a família a um funeral. De cada morte que presenciara. De quantas vezes ouvira a costumeira frase: “Descansou”. A morte soava quase como uma dádiva! Diziam e, apesar dos olhares ainda tristes, se consolavam; chegavam a esboçar um leve sorriso nos cantos das bocas. “Foi melhor assim”; abraçavam, acompanhados dessas solidárias palavras, os parentes dos defuntos. Ele se acostumou com isso. Também as disse muitas vezes ao longo da vida; jamais hesitou.
            Todavia, se antes, aos seus olhos, a morte sempre parecera sedutora, até redentora, talvez; um estado sublime em que se poderia apreciar os verdadeiros deleites, agora o fim de cada dia lhe parecia uma tortura. Ele não queria mais descansar. Estava bem assim.
            A sua triste e amargurada vida lhe parecia, naquele momento, um mar de rosas. As dores eram a prova de que vivia. Todas as suas tragédias e tristezas tinham se tornado experiências. Os intermináveis dias se tornaram curtos. Cada segundo que passava era um passo adiante para seu próprio fim.
            Sua inabalável fé começara a ruir. Surgiram as dúvidas, os questionamentos, as incertezas: E se não houvesse um Deus? E se não houvesse nada além? Como poderiam ter tanta certeza? Quem poderia lhe garantir?
            Aquilo lhe consumia. Podia sentir em suas entranhas. Era o medo. Era a morte.
            Dia após dia, aumentavam-se as dores; aumentavam-se os sofrimentos. Mas a cada instante em que os sentia ele sorria. Sabia que poderiam ser os últimos. Então sentia-os com prazer; sentia-os com vida.
            Seus pensamentos e suas verdades haviam mudado. Como haviam mudado! Mas todo o resto permanecia igual. As angústias, as dúvidas, os medos, as noites insones só se intensificavam. O fim estava próximo; isso lhe matava ainda mais.
            Fora muito fácil ignorar a morte ou até mesmo idolatrá-la enquanto ela não havia lhe batido à porta.

2 comentários:

  1. Sem a menor dúvida; quando passamos por uma situação como essas, começamos a refletir, reformular nossos conseitos e até a nossa visão das pessoas.
    Sem falar na nossa vida, nos nossos atos no decorrer dela, que insistem em ficar passando como um filme pelos nossos olhos (e acredite, quando você não é dos mais virtuosos, isso pode ser torturante).
    Mas isso é a real vida,o real sentido de "viver". Alguns recebem uma nova chance para consertar seus erros, outros infelizmente não tem a mesma sorte.

    Um forte abraço!

    ResponderExcluir
  2. "Fora muito fácil ignorar a morte ou até mesmo idolatrá-la enquanto ela não havia lhe batido à porta." Muito bom!

    Tem selos pro Psicotizzando lá no Sangue e Solidão!
    http://sangueesolidao.blogspot.com/p/selos.html

    ResponderExcluir