terça-feira, 9 de novembro de 2010

Brincando de Machado Pt. II

            Ah, aquele sorriso! Emoldurado por aqueles róseos lábios e completo com os olhos que reluziam, negros, o brilho do sol. Vi-me aproximar dela e entrelaçá-la em meus braços. Ela, me olhando com certo espanto, mas sem resistir, tocou meu rosto com suas delicadas mãos. Fitei-a profundamente os olhos e vi sua face tornar-se próxima. Quando, quase pude sentir a sua boca tocando a minha, fui interrompido.
            - Onde vais tão distraído, Sr. Azevedo?
            Despertei-me naquele instante de meus devaneios. Olhei, ainda um pouco assustado, era o Sr. Augusto de Macedo, amigo antigo de meu pai, um velho, cabelos grisalhos repartidos ao meio, baixo e gordo, com um bigode que lhe alcançava os lábios. Me viu e veio falar-me. Contudo, leitor, não entrarei nos detalhes de nossa conversa, assim poupar-te-ei – e também a mim – de se angustiar com tamanho tédio.
            Despedi-me dele e voltei para casa. Fui até meu escritório, precisava retomar o trabalho. Peguei os papéis e os livros e os espalhei sobre a escrivaninha. Fui, todavia, incapaz de fazê-lo. Por bem mais de uma vez tive que repetir cálculos ou reler um mesmo trecho de algumas páginas; sempre terminava nas lembranças do tal sorriso.
            Decidi parar um pouco. De nada adiantaria continuar. Recostei-me na poltrona. Quase cochilava quando ouvi tocar a sineta da porta de entrada. Aguardei alguns segundos na esperança de que alguém pudesse atendê-la que não eu. Mas ouvi outra vez o tilintar da sineta. Então me levantei lentamente, me recompus do meu pré-sono e fui ver quem me tirava o sossego.
            Abri a porta; prontamente me arrependi da minha demora. Os olhos, que estavam antes ainda caídos pelo sono, agora se abriam para contemplar outra vez o brilho daquele olhar. Era Anita.
            - Boa tarde, Senhorita!
            - Boa tarde, Sr. Azevedo! Me pai pediu que lhe trouxesse os cadernos de contabilidade. Quis fazê-lo rapidamente, antes que o senhor desistisse. – Terminou a frase sorrindo.
            Sorri junto. Estendi a mão para pegá-lo, porém, toquei, sem querer, a dela. Continuamos assim por alguns instantes, as mãos sobrepostas e olhando um para o outro. Ela deixou que o objeto deslizasse por entre seus dedos e ficasse seguro entre os meus. Afastou sua mão da minha um pouco sem jeito, se despediu e partiu. Eu continuei ali, vendo-a se distanciar. Dessa vez ela não sorriu, nem olhou para trás. Talvez tenha se assustado, pensei. Mas fora apenas um acaso. Não era motivo para deixá-la vexada. Não havia razão para que eu me preocupasse.
            Voltei aos meus aposentos ainda sentindo aquele delicado toque em minha mão. Sentei-me de novo na poltrona; estava, porém, desperto demais para tentar retomar minha cesta. Resolvi continuar o trabalho – que eu sequer iniciara. Comecei, entretanto, não por aqueles que já estavam esparramados sobre a mesa. Abri aquele caderno verde que Anita me entregara. Não que aquele trabalho fosse mais importante; mas ela, sim, era.
            Comecei a folhear o material. Números, números e mais números. Contas de anos de trabalho. Precisava conferi-las todas antes de dar continuidade. Cada página que passava fazia-me aumentar o tédio. Fui, todavia, surpreendido com um pequeno pedaço de papel entre as folhas do caderno. Estava dobrado, eu não podia ver seu conteúdo. Minha moral pedia que eu o deixasse ali e ignorasse, mas quanto ela valia sobre o meu lado humano, sobre minha curiosidade se estávamos na sala somente eu ela? Ignorei-a completamente, tomei o papel nas mãos, desdobrei-o e li.
            “Encontre-me amanhã à tarde, às dezesseis horas, perto do cais.” Era o que estava escrito. Era uma letra arredondada, delicada, certamente de uma mulher. Estava, contudo, com pouco capricho, fora, provavelmente, escrito às pressas. Seria para mim? Seria de Anita? Pensei. Ansiava para que fosse. Mas que garantias eu tinha? Na havia nenhuma identificação. Mas haveria de ser dela. Quem mais poderia fazê-lo? E para quem? Sim, era certamente ela. Era melhor que eu pensasse assim.
            Comecei a fazer planos, imaginei encontrá-la, tomá-la nos braços e tornar real tudo aquilo que eu havia imaginado, tudo que eu havia sonhado. Quando já estava certo de que iria, pensei: mas e se for um bilhete para o senhor Moreira? Talvez seja de uma amante. Ele era velho e feio – a beleza da filha se devia toda à mãe, com certeza, que me fazia questionar algumas vezes o motivo de ser casada com tão feio homem –, mas tinha um bom dinheiro, não seria difícil arranjar uma rapariga que lhe encontrasse por interesses. Mas ele já estava velho demais para essas coisas. Não estava mais na idade de enamorar-se às escondidas. Não poderia ser isso. Era certamente de Anita.
            Lembrei-me então da reação dela ao partir. Ficara sem graça. Agora estava claro, o que lhe deixara envergonhada não foi o toque das mãos ao acaso, mas sim o propósito que a trouxera aqui. Foi isso, desde o início, que a deixara com aquele olhar tímido.
      Essa constatação me animou outra vez leitor, passei o dia todo esperando para encontrá-la. Acredito, contudo, que estejas mais interessado no encontro do que no que se passou comigo durante o resto daquele dia e o início do outro. Então me adiantarei em satisfazer tua curiosidade. Vamos direto ao encontro do bilhete.

4 comentários:

  1. Bem machadiano, quando referimo-nos ao fato de você, Eduardo, colocar em prática a conversa do autor com o leitor. Bastante fluente a leitura do seu conto. Isso permite-nos concluir que mais uma vez sua obra realista, contudo com aspectos bem marcantes do modernismo e até do contemporanismo, foi muito agradável. De tudo que já supracitei, enfim, mais uma vez seu conto saciou um sedento por boas leituras.

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  2. Apelando para a curiosidade do leitor para que volte para ler a parte III ?! Estou mais curioso do que em penúltimo capítulo de novela. Abraço!

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  3. Curiosíssima! Estou tendo uma leitura deveras prazerosa esta tarde!

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  4. Obrigado! Que bom que vocês estão gostando. É muito importante esse retorno para poder me aprimorar e me incentivar a escrever mais.

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