domingo, 22 de agosto de 2010

De Olhos Vendados

            Era uma tarde fria de inverno. Sua mãe o recebia nos braços pela primeira vez. A alegria nos olhos dela era capaz de fazer até o mais insensível esboçar um sorriso. Ela o abraçou e olhou pra ele com seus olhos cheios de ternura e lágrimas – lágrimas que seriam a única forma de expressar as emoções e o amor que sentia ao ver o seu filho.
– Senhora... – disse a enfermeira lhe chamando a atenção e com um semblante preocupado no rosto.
            Contudo, nada seria capaz de roubar a magia daquele momento. O sorriso que tomava o rosto daquela mãe era tão sincero que, por um momento, quase fez com que a enfermeira esquece o que fazia ali.
            – Pois não. – Respondeu a mulher sorrindo ainda que estivesse muito cansada.
            – Não sei bem como lhe dizer isso...
            – É algum problema com o bebê? – Perguntou a mãe demonstrando um certo desconforto.
            – ...
            A enfermeira olhou pra ela em silêncio por alguns instantes.
            – Meu Deus, o que houve? – Perguntou a mulher à enfermeira, já agoniada.
            – Fizemos alguns exames com o seu filho. Os resultados mostraram que ele tem uma deficiência nos olhos. Seu filho não será capaz de enxergar. Sinto muito...
            As lágrimas alegres deram lugar a lágrimas de tristeza.
            – Poderia ser pior. – Disse a mulher, tentando se conformar. – Não vai ser fácil, mas não será impossível cuidá-lo. Eu o amarei, não importa o que aconteça.
            Abraçou-o junto aos seios e beijou-lhe a testa.
            Ela nunca falhou na sua promessa. Amou-o e muito, sempre. E ele cresceu tendo todo o amparo necessário para minimizar as suas dificuldades. Entretanto, seria insensato negar que o mundo, para ele, era diferente do que era para a maioria das pessoas. A sua maneira de percebê-la estava nos minuciosos detalhes do olfato, tato, paladar e audição.
            Ele aprendeu a entender e viver o mundo do seu jeito. Um mundo no escuro.
            O tempo passou e ele foi crescendo. Vivendo e aproveitando suas habilidades que, de certa forma, compensavam suas limitações. Logo já era adulto. Não foi surpresa se tornar um ilustre gastrônomo - já que, desde criança, gostava de manipular os sabores e desfrutar do seu apurado paladar. Abriu seu próprio restaurante. Começou a se virar sozinho e a conhecer novas pessoas. Dentre elas uma garota de pouco mais de vinte anos – com uma pele macia e uma voz doce – por quem ele se apaixonou.
            Em pouco mais de um ano eles decidiram se casar. Ficaram noivos. Entretanto, essa não era a única boa notícia. Poucos dias após o seu noivado ele recebeu uma ligação do seu médico.
            – Tenho boas notícias. – Disse o médico.
            – O que houve? – Perguntou ele curioso.
            – Foi desenvolvido um processo cirúrgico que seria capaz de lhe fazer enxergar. Ainda está em processo de testes, mas se você quiser se inscrever poderá fazer parte da pesquisa que talvez lhe conceda a visão.
            Aquilo sempre fora o que ele mais sonhara. Sempre ouvia as pessoas descrevendo traços e formas, cores... Ah, as cores. Eram elas que mais lhe chamavam a atenção. Ele sonhava em um dia poder vê-las.
            Ele logo foi atrás e descobriu de que se tratava o método e decidiu participar das pesquisas. Fez tudo o que lhe fora recomendado e em pouco mais de seis meses ele estava pronto para a cirurgia.
             Tanto ele e seus familiares estavam ansiosos e aflitos. Poderia ser um método revolucionário, um grande avanço na medicina. Mas para ele seria ainda mais importante, ele poderia ver o mundo do qual tanto lhe falavam.
            A cirurgia havia sido um sucesso. Bastava ver se os resultados esperados tinham sido alcançados. Então os médicos foram até o quarto para lhe tirar os curativos.
            – Está pronto? – Lhe perguntou o médico.
            – Estou. – Respondeu ele na expectativa.
            – Pode ser que não tenha dado certo. Mas veremos logo. Torça, assim como nós estamos torcendo, para que os resultados sejam positivos.
            – Torço para que isso aconteça desde o dia em que me falaram pela primeira vez da luz e das cores.
            O médico tirou os esparadrapos e começou, calmamente, a retirar as ataduras. Retirou os curativos dos olhos e lhe pediu:
            – Abra os seus olhos, por favor.
            Assim ele fez. A sensação foi ao mesmo tempo estranha e mágica. Era a primeira vez que ele sentia a luz tocar seus olhos. Ele prontamente os fechou novamente. Não estava acostumado com aquilo. Mas insistiu e descobriu que podia ver.
            Olhou para as suas mãos, as moveu diante dos seus olhos e pode ver a mágica no movimento das coisas, nas cores. Olhou para o quarto e depois para o médico – ou na direção do mesmo, que dizia algumas palavras, que ele, extasiado, sequer conseguia ouvir. Viu então o rosto de uma mulher. Levou sua mão até ele e o sentiu. Era o rosto de sua esposa. Ela era linda. Jamais havia visto outra mulher. Mas naquele momento ele teve a certeza de que ela seria a mais linda criatura que ele iria ver. Ele olhou-a profundamente nos olhos e disse:
            – Como você é linda!
            Ela não segurou o choro. As lágrimas desciam pelo seu rosto e se completavam com o sorriso.
            – Ah, meu amor, eu estou tão feliz que tenha dado certo. Eu te amo tanto! – Respondeu ela.
            As lágrimas deslizaram também pelo rosto dele.
            – Obrigado doutor!
            – Não tem o que agradecer. Trabalhamos em conjunto. Nós lhe proporcionamos a visão e você nos deu a chance de avançarmos na nossa tecnologia e ciência. Todos merecemos essa gratificação.
            Tudo havia saído como o esperado. Mas, mesmo assim, ele teve que permanecer no hospital por mais alguns dias. Fizeram todos os exames necessários e ele foi liberado.
            Agora ele estava de fato livre para desfrutar daquelas novas percepções, novas maneiras de ver e compreender tudo que sempre existiu a sua volta. Ele podia contemplar a luz do sol, o brilho das estrelas e as noites de luar. Podia se encantar com as cores e formas que sempre passaram despercebidas para ele. Era um mundo completamente novo. Não havia um dia apenas que ele não fosse a qualquer lugar que tivesse algo novo para ele poder ver, admirar.
            Numa noite de primavera ele convidou sua esposa para irem até o parque e jantarem sob a luz da lua. Eles foram, comeram, brincaram e até dançaram iluminados pelo céu estrelado. Fora completamente deslumbrante. Cada segundo daquela experiência seria capaz de inspirar os mais encantadores poetas.
            Eles voltavam para casa e ele só podia olhar para aqueles lindos olhos e aquele lindo sorriso. Tudo parecia perfeito, mas nem tudo eram flores naquela noite. Enquanto caminhavam um homem, trajando uma calça jeans e um moletom escuro com capuz, puxou-a pelo braço. A segurou forte e arrastou-a para perto dele.
            – Me dê sua carteira! – Exclamou o homem.
            Ele, assustado com aquilo que via, fez um movimento brusco na direção do homem, como se quisesse entender e questioná-lo sobre o que estava havendo. O que seria interpretado como uma reação.
            Ouviu-se um tiro. Passos rápidos se afastando dali. Um corpo caindo ao chão.
            Ele correu na direção dela. A tomou nos braços. Sentiu algo quente molhar as suas mãos. Era a primeira vez que ele via sangue. Então ele a abraçou forte e tentou falar com ela, pedir que fosse forte e dizer que tudo ficaria bem. Mas de nada adiantou. Tudo que se pôde ouvir foi um “Eu te amo!”, numa voz fraca, que se desfalecia.
            Então ele chorou. Maldisse o mundo e a vida. Desejou que nada daquilo tivesse acontecido, ou que tivesse sido ele no lugar dela. Mas isso não foi capaz de evitar que ele tivesse que velar o corpo da mais linda mulher que ele já havia visto – que ele já havia amado.
            No outro dia, ao fim do enterro, ao ver o túmulo ser fechado, ele se desesperou. Começou a chorar e a gritar. Saiu correndo em direção à casa deles. Alguns de seus familiares e amigos o seguiram para evitar que ele fizesse alguma bobagem. Contudo, o seu desespero e sua raiva lhe deram força para correr mais rápido do que pudessem alcançá-lo. Ele queria estar só.
            Os que o seguiram chegaram à casa alguns minutos depois dele. A porta estava aberta. Tudo o que ouviram foi um grito desesperado de dor. Vinha do quarto. Eles correram até lá e o viram. Ele tinha um vestido dela nos braços e as mãos ensanguentadas. No seu rosto escorria – como lágrimas – o sangue que saía dos seus olhos. Era melhor viver nas ilusões da escuridão do que enxergar o mundo real.

Fim

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

O Retrato

            Mudara-se para aquela casa há poucos dias. Uma casa antiga, de arquitetura rústica, porém bem construída e bem conservada. Contudo, ele sequer tivera tempo de desfrutá-la. Precisava terminar de organizar as suas coisas.
            Estava separando o que realmente usava daquilo que guardava por razões que ele mesmo desconhecia. Já tinha lhe rendido uma pilha de tranqueiras. 
            Lembrou-se de que havia um porão na casa. Talvez seja melhor guardar essas coisas lá embaixo, ocuparão menos espaço do que aqui em cima, pensou.
            Levantou-se - estava sentado no chão para encaixotar aquilo que levaria para baixo. Foi até a sala de entrada e pegou um molho de chaves que estava na fechadura. Caminhou até a porta do porão. Abriu. Acendeu a luz. Pegou a caixa com as coisas. Desceu.
            O lugar estava quase que completamente vazio, exceto por algo coberto por um pano branco. Ele não sabia o que era aquilo, mas tinha uma certeza: não era dele.
            Abaixou-se e pôs a caixa no chão. Andou até o objeto desconhecido  e puxou lentamente o pano, que escorregou, revelando um quadro. Era a pintura do rosto de uma linda mulher. A dona dos mais lindos olhos que ele jamais havia visto. Olhos que o hipnotizaram, deixaram-no atônito. Por um tempo que ele seria incapaz de contar, apenas contemplou com fascínio o tão belo olhar.
            Depois de um longo período despertou-se de seu transe; recobrou os sentidos. Subiu novamente as escadas. Precisava que terminar de arrumar as coisas. Mas concentra-se de que jeito? Aquela imagem simplesmente não lhe saía da cabeça. Quem era aquela mulher? Se perguntava. O que era aquilo que ele estava sentindo? Parecia loucura...
            Toda aquela explosão de emoções dominara seus pensamentos. Ele parou com tudo o que estava fazendo. Foi até o quarto e se deitou. Precisava refletir um pouco. Ficou lá, de costas na cama, olhando para aquele tento branco e pensando, tentando imaginar quem era ela, ou onde poderia encontrá-la.
            Perdeu-se em seus devaneios e, após alguns instantes, adormeceu. Sonhou... com ela.
            No sonho, a viu – estava tão linda quanto na pintura. Tomou-a pelas mãos e abraçou. Sentiu seu corpo junto ao dela. Tocou aquele rosto de pele macia e deslizou dedos lentamente até que pudesse sentir tão doces lábios. Aproximou sua face da dela e sussurrou algumas palavras em seu ouvido. Fitou-a profundamente nos olhos. O silêncio. Quebrado por um beijo. Um beijo que jamais sairia da sua memória. Um beijo que marcara seu despertar.
            Estava confuso. Tentou adormecer novamente, voltar para aquele sonho. Foi em vão. Então ele desejou vê-la, tocá-la, ou, simplesmente contemplar, frente a frente, aquele fascinante olhar. Mas de que adiantaria? Não passava de um retrato...

Fim

sábado, 14 de agosto de 2010

Melancolia

            Eram dez horas da manhã, ele acabava de acordar. Abriu os olhos ainda sonolento e então observou os poucos raios de sol que adentravam as frestas da janela do quarto. Era um novo dia, trazia novas oportunidades e expectativas, mas, para ele, era somente um sábado como todos os outros.
            Virou-se de lado e viu que estava vazio o lugar de sua mulher. Ela teria, provavelmente, despertado havia algum tempo. Ele se levantou e foi até o banheiro. Não acendeu as luzes, a penumbra era suficiente, ao menos assim ele seria poupado de encarar o seu olhar vazio.
        Lavou o rosto e voltou para o quarto. Desejou estar ali sozinho quanto tempo fosse possível. Estar naquele lugar que seria só seu, onde ele poderia libertar os seus mais obscuros sentimentos. Porém, o silêncio se quebrou com o ranger das dobradiças da porta.
            – Bom dia, meu amor! – disse-lhe a esposa animada e com um belo sorriso nos lábios.
            – Bom dia! – respondeu ele, seco, porém gentil, sorrindo um sorriso amarelo.
            Ele fitou-a nos olhos por alguns instantes. Um olhar tão profundo que poderia penetrar a alma. Então ele aproximou-se dela e a tomou nos braços. Tocou seu rosto ao dela e disse algo que há muito ele não falava:
             Eu te amo!
            Ela sentiu uma chama arder dentro dela, depois sorriu. Ele a beijou. Um beijo como ela jamais havia sentido. Ele tocara os lábios dela como se fosse a última vez que os sentiria junto aos seus.
            Com um olhar frio ele deixou que os seus dedos deslizassem pelo ventre da mulher até que se afastassem dele e atravessou a porta do quarto.
          Ao sair ele foi tocado pelos raios de sol que iluminavam o corredor. Aquilo o incomodara. Ele fechou os olhos e desejou novamente estar no escuro dos seus aposentos, onde ninguém pudesse lhe encontrar. Passou as mãos no rosto para não se perder novamente em pensamentos e desceu até a cozinha. Pegou uma xícara de café e bebeu. Aquele aroma amargo e frio lhe pareceu o mais doce mel.
            Olhou para a varanda e viu o filho. Ele parecia feliz brincando sorridente ao sol. Mas aquela imagem não foi capaz de despertar no homem o menor sentimento. Ele apenas deixou a xícara sobre a mesa e voltou até o quarto. Trocou de roupas e saiu.
            Enquanto andava em direção à porta de saída sua mulher lhe perguntou:
            – O que houve? Aonde você vai?
            – Houve alguns problemas na firma essa semana. Me encarreguei de conferir as contas. Devo me demorar. Portanto, não me espere pro almoço ou sequer pro jantar. Eu como algo na rua.
            Ela só pode ver a imagem dele, de costas, deixando a casa.
            No quintal ele abraçou o filho e beijou-lhe a face. Foi um abraço apertado e um beijo tão doce que fez o menino sorrir.
            – Eu te amo, papai!
            – Também te amo, meu filho!
            Ele foi até a garagem, entrou no carro e saiu. Rodou por horas, sem rumo. Pensou, refletiu, mas não chegou a nenhuma conclusão. Parou num bar, mas não num bar onde costumava ir, num outro qualquer, longe, onde tinha certeza que não veria ninguém conhecido.
            Lá ele entrou e se sentou numa mesa ao fundo, isolada. Não queria falar com ninguém; não queria ver ninguém. Tudo que ele queria era um momento para estar só consigo mesmo. Pediu uma garrafa de uísque e um copo. Ficou lá até terminar a última dose da garrafa. Ao sair pagou pela bebida mais do que ela custava e não deu a mínima quando o dono do recinto tentou lhe falar. Apenas saiu.
            Deixou o carro na porta do estabelecimento e saiu para caminhar. Não sabia para onde ir ou sequer onde queria chegar. Ele apenas andou.
            Vagou por horas até o entardecer. Quando o sol estava quase posto ele viu uma construção. Devia ser um prédio de uns quatorze ou quinze andares.
            Vou subir, pensou ele.
            Lá ele estaria só e de brinde teria uma bela vista. Subiu. Olhou para a cidade, onde começavam a se acender as primeiras luzes. Olhou então para o céu. Tentou falar com seu Deus, mas, como de costume, Ele não lhe respondeu. Ele então pensou naquela vida sem sentido. Começou a sorrir e gargalhar, zombava de tudo que vivera até ali.
            Subiu no parapeito e começou a dançar e rodopiar. Viver não fazia mais diferença, e num passo em falso ele viu seu corpo deslizar no ar.

Fim

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

A Morte em Preto e Branco



            Ainda jovem a Morte bateu-lhe à porta. Ele não tinha chegado nem mesmo aos seus trinta anos. Não havia vivido o suficiente. Seria injusto morrer ali. Foi então que teve uma ideia. Fitou a Morte nos olhos – se é que aquilo que o encarava com um olhar cadavérico podia ser chamado de olhos - e propôs:
            – Por que não fazemos um jogo? Se você vencer eu lhe entrego a minha vida, mas se eu vencer você me deixa escolher o dia em que morrerei.
            – Tua vida já está nas minhas mãos – retrucou a Morte. De que me valeria vencer-te?
            – Pois faça então as suas regras, contanto que não me tome agora a vida, eu aceito.
            A Morte, com um estalo de dedos, fez surgir na frente do homem um tabuleiro de xadrez. As peças brancas o tinham como rei; e o rei das peças negras era ela, carregando sua foice, afiada e mortal, que já tomara de muitos as vidas e de muitos mais a vontade de viver.
            Tomou então com suas mãos pútridas as peças dos reis e disse:
            – Cada jogada ocorrerá num período de três meses. Para cada peça minha que tu tirares eu te concederei um ano a mais até a minha próxima jogada. Porém, a cada peça que eu tomar de ti levarei comigo alguém a quem tu amas. No fim, se eu vencer-te, todos os sacrifícios terão sido em vão e tomar-te-ei a vida. Entretanto, se eu perder, te oferecerei aquilo a que todos os mortais mais cobiçam, algo pelo qual muitos deram suas vidas... a imortalidade.
            Fascinado, de súbito, respondeu:
            – Eu aceito.
            A Morte lhe fez um pequeno corte na mão esquerda e selou o contrato com seu próprio sangue. Um contrato que jamais poderia ser quebrado e que declarava o início do jogo.
            Era o turno dele de jogar. Assim ele fez, moveu sua primeira peça. Num piscar de olhos a Morte desapareceu, deixando apenas as seguintes palavras: “Três meses”.
            Ele estava atônito e pasmo, mas, ainda sim, alegre. Jamais perderia aquele jogo. Quantos teriam feito o que ele fez? Ele acabara de enganar a morte. A imortalidade era, para ele, tão certa quanto a Morte era para todos os outros.
            Três meses se passaram e ela voltou. Como um vulto na noite ela surgiu. Fez então a sua primeira jogada.
            Assim se seguiu durante os dois primeiros anos. Parecia estar tudo sob controle. Até que ela fez a sua primeira jogada mortal, tomou-lhe o primeiro peão, e levou junto o pai do seu desafiante.
            Agora ele estava confuso. Não sabia o que fazer. Não havia pensado naquelas conseqüências. Três meses não eram o suficiente para ele pensar em uma solução.    Contudo, definitivamente, ele não tinha como voltar atrás, havia selado o contrato com seu próprio sangue. Recompôs-se e reformulou sua estratégia. Só havia um jeito de ganhar tempo. Após três meses fez seu ataque. Teria agora um ano até a próxima jogada de sua rival.
            Ao término do último dia do décimo segundo mês ela voltou. Ele já tinha certeza do que ia acontecer. Sua mãe estava doente. Certamente a jogada dela já estava programada. Ele estava certo, perdeu a segunda peça e derramou lágrimas sobre o túmulo de sua mãe.
            Mais três meses se passaram e era a vez dele jogar. Numa jogada desesperada ele tentou ganhar mais um ano. O fez. Tomou da Morte mais uma peça.
            Nesse meio tempo, foi surpreendido com uma notícia que jamais poderia esperar, sua esposa estava grávida. Ele não contava com aquilo. Essa notícia o deixou ainda mais angustiado. Poderia perder seu próprio filho, sangue do seu próprio sangue.
            Ele estava aflito, cada dia que passava era a contagem regressiva para mais uma jogada dela. Mas ela não lhe tomaria outra peça dessa vez, seria insensato. Ela estava montando sua estratégia para pegá-lo, tomar-lhe peças seria atrasar o próprio jogo. Então ele se acalmou. Ela voltaria, jogaria e ele tomaria dela mais uma peça qualquer e ganharia mais tempo. Dois anos e três meses seriam tempo suficiente para pensar em uma solução.
            Então ao fim de um ano ela veio. Para completo espanto dele ela não seguiu a estratégia. Fez uma jogada completamente absurda apenas para lhe tomar uma peça. Falecia de complicações no parto a esposa.
            A morte não estava jogando para derrubar seu rei. Apenas queria lhe tomar peças e, consequentemente, aqueles a quem ele amava. E o próximo alvo seria, com toda certeza, o seu filho, que acabara de nascer.
            O tempo era curto. Tinha apenas três meses pra decidir o que fazer. De nada adiantaria ganhar mais um ano, pois se ele a deixasse jogar novamente ela lhe tomaria uma outra peça; lhe tomaria outro alguém.
            Durante cada dia desse intervalo ele não conseguiu parar de pensar naquele maldito jogo um segundo sequer. Não dormia e mal conseguia comer. Passava horas e horas com seu filho nos braços imaginando o que estaria por vir.
            Os três meses terminaram. Assim que o relógio marcou meia-noite ela apareceu. Veio com seu sorriso sádico e frio dizendo:
            – Faze tua jogada, meu nobre futuro imortal.
            Ele tinha que fazer a jogada. Naquele instante toda sua vida passou diante dos seus olhos. Se lembrou de todos os momentos que vivera com sua mãe e seu pai. Cada palavra, cada toque, cada beijo, cada segundo que passou junto com sua esposa. Mas o singelo sorriso que esboçara em seu rosto desapareceu quando lhe veio à mente as lembranças de cada funeral. Então lhe veio o rosto do seu filho.
            De que valeria a imortalidade se o preço era estar para o todo só e ver aqueles a quem ele amava perecerem diante dos seus olhos? Ele não queria aquilo. Não queria ter que chorar sobre o túmulo do seu filho – uma criança com toda a vida pela frente – como fizera sobre os túmulos do pai, da mãe e da amada esposa.
            Os seus olhos se encheram de lágrimas e medo. Ele tomou o rei branco nas mãos. Apertou-o fortemente e encarou profundamente a morte.
            - Você venceu! - Disse ele.
            Num átimo de coragem ele deitou o seu rei sobre o tabuleiro, entregando o jogo e também a sua própria vida.

Fim